A Chave de Maria

A Chave de Maria

A garrafa térmica, amassada e sem o adesivo original do café, agora repousava sobre o balcão empenado da venda da Dona Vera. A tarde caía preguiçosa sobre Vila Esperança, com aquele calor úmido que grudava na pele e o cheiro de fritura misturado ao de terra molhada das poucas plantas que teimavam em sobreviver em vasos quebrados.

João, com os olhos cansados de quem trabalhou o dia inteiro no sol, pegou a garrafa. O metal frio, apesar do sol de outono, lhe trouxe um leve arrepio. Ele não gostava daquela garrafa. Ela tinha pertencido a Maria. Maria, que ele amava, que o deixou sem uma palavra, levando consigo apenas um pedaço da sua alma. A garrafa estava ali, esquecida por ele após a última discussão acalorada, dias antes dela sumir. Dona Vera a guardava, para o caso de Maria voltar.

“O que vai querer, João?”, a voz rouca de Dona Vera o tirou do torpor.

“Só o suco de laranja, Dona Vera. E… a garrafa”, disse, com um nó na garganta.

Ela o olhou, compreensiva. Sabia da história. Maria era a sobrinha querida, a que prometia um futuro melhor, a que sumiu e deixou para trás um rastro de desilusão e dívidas. Dona Vera guardou a garrafa não por esperança, mas por um certo receio de que se desfazer dela pudesse selar o desaparecimento de Maria de vez.

João pagou o suco, engoliu o líquido ácido e amargo, e com a garrafa na mão, sentiu um peso que não era só o do metal. Caminhou pela rua de paralelepípedos irregulares, o barulho das sandálias ecoando no silêncio crescente. Parou em frente ao muro pichado do terreno baldio, onde Seu Armando, o aposentado rabugento, costumava sentar-se para observar o movimento.

Seu Armando estava lá, como sempre, um cigarro quase apagado pendendo dos lábios secos. Seus olhos, pequenos e penetrantes, seguiram João com a garrafa.

“Essa garrafa… era da Maria, não é?”, perguntou Armando, sem rodeios.

João assentiu, sem parar.

“Ela me deu pra você. Disse que era pra eu te entregar… se você fosse atrás dela. Mas ela sumiu antes de me dar a ordem completa. Mandou eu guardar, mas não disse pra quem entregar. Achei que fosse pra mim, pra me dar de presente, sabe? Pra ela lembrar de mim. Mas ela nunca lembrava de ninguém de verdade, só do que queria.” Ele deu uma tragada profunda no cigarro, a fumaça picando o ar. “Mas ela também me disse pra vender se precisasse, pra comprar mais cigarro. E eu precisei, João. Precisei muito.”

João sentiu uma pontada de raiva e tristeza misturadas. Seu Armando, o ladrão de cigarros e de confidências alheias.

“Ela te deu pra vender?”, a voz de João saiu dura.

“Ela deu e não deu. Era um jeito de dizer que eu podia ficar com ela se ela não voltasse. E ela não voltou, né? Então, teoricamente, era minha.” Armando soltou uma risada seca. “Mas você quer? Leva. Eu já me acostumei com a solidão. Não preciso de lembrança de quem não me ligava nem pra pedir um pão.”

João estendeu a mão. Armando cedeu a garrafa, sem hesitar. O metal parecia mais pesado agora, a amargura de Armando contagiando o objeto.

No ônibus lotado, o cheiro de suor e desinfetante envolvia João. Ele se agarrava à garrafa como a uma boia. No banco ao lado, a jovem Ana, com o rosto marcado pela preocupação e as mãos finas apertando a alça de uma bolsa surrada, observava a garrafa com um brilho incomum nos olhos. Ana era a vizinha de Maria, a que sempre a ajudava com as compras, a que ouvia os desabafos.

“Essa garrafa…”, começou Ana, a voz trêmula. “A Maria me emprestou uma vez, pra eu levar café quente pra minha mãe no hospital. Ela disse que era importante, que tinha um valor sentimental pra ela. Quando ela sumiu, eu fiquei pensando… será que ela levou? Será que perdeu? Eu… eu peguei ela de volta na casa dela depois que ela foi. Achei que ela ia voltar e pedir. Eu ia devolver. Mas ela não voltou. E eu… eu tava precisando tanto. Pra vender. Pra comprar remédio.”

João olhou para Ana, a compaixão lutando com a desconfiança. A garrafa, que ele acreditava ser apenas um resquício do seu amor desfeito, parecia ter mais história do que ele imaginava.

“Você pegou ela de volta?”, perguntou João, a voz embargada.

“Sim. Achando que ela ia voltar. Mas aí… o tempo passou. E a necessidade aperta. Eu não queria roubar, de verdade. Eu só… precisei.” Ana desviava o olhar, as lágrimas começando a rolar pelo rosto. “Eu ia vender. E ela sumiu com a nota de um empréstimo que eu fiz pra ela. Dizendo que ia me pagar, e nunca pagou. Por isso que eu… por isso que eu peguei. Pra compensar um pouco.”

O ônibus parou. A multidão se acotovelou para descer. João, com a garrafa ainda nas mãos, sentiu o peso dobrar. Ele via agora a desilusão nos olhos de Ana, a mesma que ele sentia. A mesma que Dona Vera guardava em seu silêncio. A mesma que, talvez, Maria carregasse consigo, em algum lugar, com essa garrafa ou sem ela.

Na sua casa simples, o cheiro de mofo e solidão o recebeu. Ele colocou a garrafa sobre a mesa da cozinha, o metal frio refletindo a luz fraca da lâmpada. Olhou para ela, a garrafa que fora de Maria, que fora de Armando, que quase fora de Ana. Que motivos teriam levado Maria a deixá-la, a vendê-la, a emprestá-la? E para onde ela fora, levando consigo não apenas um pedaço dele, mas também as esperanças e necessidades dos outros? A garrafa ali, muda, testemunha silenciosa de anseios, mentiras e de uma partida que, talvez, nunca tivesse sido realmente uma partida. Apenas um deslocamento. E quem sabe, um dia, ela voltaria a mudar de mão, trazendo novas histórias, novas angústias, novas justificativas. Ou talvez, simplesmente, permanecesse ali, como um troféu que ninguém queria, mas que todos, de alguma forma, sentiam pertencer.


Por: Ricardo Soares Guedes

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