A Cantiga das Raízes Esquecidas

A Cantiga das Raízes Esquecidas

O ar na Floresta dos Ossos tinha um peso próprio, denso e impregnado de um aroma terroso que parecia dançar entre o doce e o pungente. Eu, Isabela Fernandes Couto, com meus cadernos repletos de anotações sobre flora endêmica e um faro aguçado para o incomum, sentia essa atmosfera como uma manta fria se acomodando sobre meus ombros. Os rumores eram persistentes, sussurros distorcidos que chegavam até a cidadezinha de Pindorama: pessoas desapareciam, engolidas pela vegetação fechada sem deixar rastros. A polícia local, com seu ceticismo burocrático, falava em acidentes e desorientação. Mas eu, com a mente aberta para os segredos que a terra guarda, sabia que havia algo mais.

A Floresta dos Ossos não era um nome dado ao acaso. Lendas antigas falavam de um povo que ali habitou, extinto por razões obscuras, cujos ossos se misturaram à terra, alimentando uma vegetação peculiar. Diziam que os espíritos daqueles que pereceram, marcados pela dor e pelo esquecimento, vagavam entre as árvores imponentes. E foi essa mistura de folclore e desaparecimentos que me atraiu, a etnobotânica em busca da conexão entre a vida e a morte, entre a planta e a memória.

Os primeiros dias foram um exercício de paciência e observação. Catalogava cada variedade de samambaia, cada musgo que cobria os troncos como um manto esmeralda, cada flor de pétalas pálidas que desabrochava em meio à penumbra. Mas era a flora que chamava minha atenção, especialmente um tipo de trepadeira de folhas largas e bordas serrilhadas, que os antigos locais chamavam de “Urtiga-do-Lamento”. Segundo os poucos relatos que consegui extrair dos mais velhos, era uma planta perigosa, capaz de causar visões terríveis.

Comecei a notar algo perturbador. Ao me aproximar de aglomerados de Urtiga-do-Lamento, uma sensação incômoda se instalava em mim. Ecos de angústia, como murmúrios abafados, pareciam emanar das próprias plantas. Eram fragmentos de pensamentos, flashes de medo e desespero que se sobrepunham aos meus. Inicialmente, atribuí à fadiga, ao estresse da investigação solitária. Mas o fenômeno se intensificava.

Em uma tarde chuvosa, enquanto documentava uma exemplar particularmente robusta de Urtiga-do-Lamento, a floresta se transformou. O verde vibrante das folhas pareceu adquirir um tom doentio, quase acinzentado. Os sons habituais da mata – o farfalhar das folhas, o canto distante dos pássaros – foram substituídos por um zunido baixo e constante, um coro dissonante que parecia ressoar dentro do meu crânio. Senti uma vertigem avassaladora, seguida por um fluxo de memórias que não eram minhas. Vi rostos desesperados, mãos tateando em busca de uma saída impossível, o silêncio ensurdecedor do fim.

Recuei, o coração disparado, tentando racionalizar. Etnobotânica. Memória vegetal. A hipótese, antes absurda, ganhava contornos sombrios. E se as plantas da Floresta dos Ossos, fertilizadas pela tragédia, tivessem desenvolvido uma forma de registrar e replicar a dor? E se a Urtiga-do-Lamento, em particular, agisse como um canal para esses ecos psíquicos?

Passei a observar os padrões de desaparecimento. As vítimas geralmente se aventuravam em trilhas menos batidas, onde a Urtiga-do-Lamento crescia em abundância. Era como se a floresta, com sua vegetação carregada de sofrimento, atraísse e, em seguida, consumisse aqueles que se tornavam suscetíveis à sua influência.

Aos poucos, a fronteira entre a realidade e os ecos psíquicos começou a se desvanecer dentro de mim. A sanidade, antes um porto seguro, parecia um navio à deriva em um mar de lamentos ancestrais. As flores pálidas pareciam me encarar com olhos vazios, e o sussurro das folhas transformava-se em palavras inaudíveis, promessas de paz efêmera em troca da própria essência.

Um dia, ao examinar um ramo fino de Urtiga-do-Lamento, senti um impulso irresistível de tocar em suas folhas serrilhadas. Era uma tentação sombria, um convite para me perder na vastidão da dor alheia, para finalmente entender o que havia levado aqueles desaparecidos a se entregarem à floresta. Em meus dedos, senti não apenas a textura áspera da planta, mas um choque elétrico de desespero. Vi um homem, um dos desaparecidos, caminhando em círculos, a confusão estampada em seu rosto, a floresta se fechando ao seu redor.

Com um esforço hercúleo, afastei a mão, a adrenalina combatendo o torpor que me dominava. Era isso. A Floresta dos Ossos não era apenas um lugar de tragédias passadas; era um organismo vivo, um repositório de sofrimento que se alimentava de novas dores. As plantas, em sua capacidade de absorver e propagar, tornavam-se as mensageiras silenciosas, as propagadoras de uma cantiga fúnebre que atraía e aprisionava almas.

Decidi que minha missão não era apenas documentar, mas também alertar. A Floresta dos Ossos era um perigo latente, um lugar onde a própria natureza, em sua forma mais sombria, se tornava a predadora. A beleza exótica das plantas escondia uma verdade aterradora: a memória do sofrimento, quando enraizada e propagada, podia ser a mais mortal das armadilhas.

Antes de deixar a floresta, senti um último sussurro. Não era mais um eco distante, mas uma presença palpável. A Urtiga-do-Lamento, em toda a sua glória cruel, parecia me observar, uma promessa velada de que, se eu me deixasse levar, também me tornaria parte da sua cantiga. Mas eu, Isabela Fernandes Couto, com a sanidade lutando para se manter firme, sabia que a minha lembrança, por mais dolorosa que fosse a verdade, seria a única arma contra o sussurro silencioso da Floresta dos Ossos.


Por: Isabela Fernandes Couto

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