Um grupo de aventureiros é contratado para resgatar alguém que foi levado por uma criatura que se manifesta através de rituais obscuros.
O Arrebatamento de Pedra Clara
O cheiro acre de mofo e umidade grudava nas roupas de Duda mesmo após horas de caminhada. A noite na serra catarinense, apesar de fria, carregava um abafamento estranho, como se o próprio ar estivesse pesado de segredos não ditos. Estavam ali, a pedido do velho Elias, por causa da neta dele, a pequena Clara. Desaparecida há três noites, sem um pingo de sangue, sem um grito sequer, apenas o silêncio que, segundo Elias, era mais assustador que qualquer barulho.
“Ele jurou que viu”, murmurou Tiago, o mais novo do grupo, a voz embargada pela exaustão e pelo receio que começava a se instalar. Tiago era bom com números, não com lendas. Tinha entrado na equipe por causa do dinheiro, mas a cada passo na trilha escura que Elias descreveu, o dinheiro parecia um prêmio insignificante diante do peso do desconhecido.
“O velho Elias não é de inventar moda, garoto”, respondeu Marlene, a matriarca do grupo. Seus olhos, apesar da pouca luz das lanternas, pareciam perscrutar a mata densa com uma familiaridade que beirava o instinto. Ela era a “veterana”, a que já vira de tudo – ou assim pensava ela. Tinha um jeito bruto de falar, mas uma gentileza escondida em cada gesto, um cuidado com os mais jovens que a tornava um porto seguro na incerteza.
João, o líder silencioso, parou. A lanterna de sua mão varreu uma clareira escura, onde a vegetação se abria de forma estranha. No centro, um círculo de pedras lisas, escuras, que Elias mencionara. O ritual. A “criatura que se manifesta”. João não acreditava em nada disso, ou pelo menos, fingia não acreditar. Era pragmático, um homem de ação, sempre com um plano. Mas ali, naquele silêncio denso, algo o incomodava. O ar parecia vibrar, um zumbido baixo que ele sentia mais nos ossos do que ouvia.
“O que o Elias disse que aconteceu aqui?”, perguntou Duda, a mais observadora. Tinha um olfato apurado, uma percepção aguçada para detalhes que passavam despercebidos. Sentiu um cheiro peculiar, algo adocicado e terroso, que não pertencia à floresta úmida.
“Que foram feitos cantos, que houve uma oferta”, respondeu Marlene, a testa franzida. “Elias não soube explicar direito. Coisas de antigamente, disse ele. Coisas que não deviam ser perturbadas.”
Tiago estremeceu. “Oferta? O que ofereceram?”
João se ajoelhou perto de uma das pedras. Ela parecia fria, mas transmitia uma sensação de calor latente, quase imperceptível. Havia marcas na superfície, gravuras irregulares que pareciam ter sido feitas com unhas, ou garras. “Clara”, ele disse, a voz baixa.
Duda se aproximou. “Não pode ser. Elias disse que só o cheiro dela estava ali.”
“O cheiro e o silêncio”, completou Marlene, um arrepio correndo por sua espinha.
A noite se aprofundou. As lanternas projetavam sombras dançantes que pareciam se contorcer como se tivessem vida própria. Tiago começou a sentir um aperto no peito, uma claustrofobia crescente. Via um vulto no canto do olho, uma forma esguia que sumia antes que pudesse focar. “Vocês viram isso?”, sussurrou.
Marlene colocou uma mão firme no ombro dele. “Fique calmo. Concentre-se. Estamos juntos.”
João se levantou, o olhar fixo nas gravuras. Ele reconheceu um padrão, uma repetição que não era aleatória. Era uma linguagem, crua, primitiva. “Isso não é só uma história, Elias não se deixou levar por qualquer coisa”, pensou ele. Sentiu uma pontada de culpa. Talvez eles tivessem sido lentos demais. Talvez tivessem demorado a chegar.
De repente, um som rompeu o silêncio da mata. Não era um grito, mas um sussurro longo, arrastado, que parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo. A luz das lanternas tremeluziu. O cheiro adocicado e terroso se intensificou, quase sufocante.
Duda tapou o nariz. “Que cheiro é esse? Parecido com… com mel podre.”
Marlene fechou os olhos por um instante. Tinha uma memória antiga, um conto de sua avó sobre coisas que se alimentavam do medo, da desesperança, e que se manifestavam nos lugares onde a fé se esvaía. “Fiquem juntos”, ela repetiu, a voz mais firme agora.
João sentiu uma força invisível o empurrando. Não era uma rajada de vento, era algo mais insidioso, uma pressão que visava desestabilizá-los, separá-los. Ele agarrou a lanterna com mais força. Onde estava Clara? O que havia acontecido com ela? A inocência de uma criança, a fragilidade de um ser puro, contra algo que se nutria de escuridão.
Tiago soltou um grito abafado. Uma sombra mais densa que a própria noite se materializou entre as árvores. Não tinha forma definida, era mais uma ausência de luz, um vazio que parecia sugar a energia do ar. Ele viu, por um instante fugaz, algo que lembrava olhos, sem pupilas, apenas profundidade.
Marlene puxou João e Duda para trás, para mais perto do círculo de pedras. “Elias disse que para trazer de volta, é preciso oferecer algo. Algo que a criatura quer.”
João olhou para as pedras, para a escuridão pulsante. “O que ela quer?”, ele perguntou, mais para si mesmo do que para os outros. A resposta parecia pairar no ar, indecifrável.
No meio da clareira, um movimento sutil. Algo pequeno, branco, balançava suavemente como um pêndulo invisível. Um choro infantil, fraco, quase inaudível. Clara. A criatura não a havia levado para longe, mas a mantinha ali, no centro de tudo, como um troféu, um chamariz.
O sussurro voltou, mais alto agora, mais insistente, como um lamento. Duda sentiu um nó na garganta. Tinha uma foto de Clara na carteira, um sorriso largo e despreocupado. Como algo tão puro podia estar ali, à mercê de… do que quer que fosse aquilo.
João olhou para os rostos aterrorizados de Tiago e Duda, para a determinação tensa de Marlene. Eles vieram por um trabalho, por dinheiro. Mas agora, ali, no limite do mundo conhecido, eram apenas pessoas diante do inexplicável, com uma criança para salvar.
A criatura se aproximou do círculo, a escuridão avançando como uma maré. Não emitia som, mas o zumbido nos ossos de João se intensificou, quase doloroso. O cheiro adocicado e podre tomou conta de tudo.
“O que fazemos?”, sussurrou Tiago, as mãos trêmulas.
João olhou para Marlene, depois para Duda. Seus olhos se cruzaram. Uma pergunta silenciosa, uma decisão que precisava ser tomada em um instante. O que eles estavam dispostos a oferecer? O que realmente importava? O medo era palpável, mas algo mais forte começava a despontar, uma faísca de desafio, de amor, de desespero. E o suspiro da mata parecia esperar a resposta.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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