O Cinza por Trás do Balancete
Aos quarenta e sete anos, a vida de Marcelo se resumia a números. Números que encaixavam, números que não batiam, números que, no fim do mês, pintavam o quadro de uma existência razoavelmente estável. Sua sala na “Horizonte Consultoria” era um espelho dessa ordem: móveis sóbrios, um aquário com peixes dourados de movimentos previsíveis, e a janela que dava para uma rua movimentada em Pinheiros, São Paulo, onde o burburinho da cidade era um som ambiente familiar.
A rotina era um cobertor pesado e reconfortante. Café preto forte pela manhã, o tilintar das teclas, o aroma fraco de papel antigo e, ao fim do dia, a volta para o apartamento modesto onde o aguardava a companhia silenciosa de sua coleção de discos de vinil. Tinha uma ex-esposa, Mariana, com quem mantinha uma relação cordial e dois filhos adultos que raramente o procuravam, imersos em suas próprias jornadas. Era um homem de poucas paixões explícitas, exceto talvez pela organização meticulosa de suas finanças pessoais e a busca por uma raridade de Chet Baker.
A primeira fissura na armadura cinzenta apareceu na forma de um código incomum em um dos relatórios de despesas. Um fornecedor desconhecido, “Oráculo S.A.”, com faturas que mais pareciam poemas cifrados do que prestação de serviços. Inicialmente, Marcelo arquivou como mais uma excentricidade do departamento de P&D, conhecido por suas ideias vanguardistas e orçamentos inflados. Mas a insistência daquele nome peculiar começou a incomodá-lo.
Naquela noite, em vez de um jazz suave, a solidão pesou. A imagem de Mariana, com seus olhos expressivos e a risada fácil que ele aprendera a temer pela sua efemeridade, surgiu na memória. Por que se afogava em planilhas quando a vida lá fora pulsava com cores que ele mal ousava nomear?
Decidiu investigar. Usando suas credenciais de administrador, mergulhou nos servidores da empresa. O que encontrou não eram algoritmos complexos ou patentes disruptivas. Eram arquivos criptografados, acessíveis apenas por senhas que desafiavam a lógica, nomes de projetos que soavam como títulos de ficção científica barata: “Projeto Sombra”, “Convergência Celeste”, “Éter Lumina”. A curiosidade profissional se transformou em um arrepio gelado.
Os detalhes, fragmentados e assustadores, começaram a se encaixar como peças de um quebra-cabeça macabro. Orçamentos astronômicos direcionados a laboratórios isolados no interior de Minas Gerais, com insumos que incluíam artefatos de origens duvidosas e relatórios que falavam em “transferência de consciência” e “ressonância interdimensional”. Havia notas de reuniões com indivíduos cujos nomes eram precedidos por títulos desconcertantes: “Hierofante”, “Guardião da Névoa”. E, em meio a tudo isso, referências a entidades “não-terrenas” e “rituais de invocação”.
Magia negra e extraterrestres. O contador que passava os dias decifrando códigos de barras e impulsionando margens de lucro estava, inadvertidamente, administrando os fundos de um projeto secreto que beirava o delírio. O cinza de sua existência se tingiu com cores que ele nunca imaginou existirem.
O dilema o corroía. Denunciar significaria o fim da Horizonte, a ruína de sua carreira, a exposição pública de sua própria cumplicidade. Manter o silêncio era ser cúmplice de algo que, em sua mente racional, não deveria existir. O que era pior? A falência de sua integridade ou a aniquilação de seu mundo?
Uma noite, ele pegou o carro e dirigiu para longe do asfalto conhecido. As luzes de São Paulo foram se apagando no retrovisor, substituídas pela escuridão campestre. O cheiro de terra molhada invadiu o carro. Ele parou em um posto de gasolina isolado, a luz fluorescente do interior revelando um velho atendente com olhos que pareciam ter visto mais do que o carteira de motorista permitia.
“Uma noite fria, hein?”, o homem disse, com a voz arrastada.
Marcelo apenas assentiu, sentindo a vastidão do céu estrelado acima, um convite silencioso para o desconhecido. Olhou para as estrelas, buscando um sentido, um sinal.
De volta ao seu apartamento, o silêncio parecia mais denso, pontuado apenas pelo tic-tac do relógio na parede. Pegou um de seus discos favoritos, um álbum de Miles Davis. Colocou o vinil no toca-discos, o chiado inicial preenchendo o ar. A música, complexa e melancólica, o envolveu.
Ele sabia que não podia simplesmente voltar a organizar balancetes como se nada tivesse acontecido. O oráculo da “Oráculo S.A.” havia falado, e as reverberações desse anúncio secreto ecoavam em sua alma.
No dia seguinte, Marcelo chegou à Horizonte Consultoria mais cedo do que o habitual. O aquário de peixes dourados refletia a luz fraca da manhã. Ele sentou-se à sua mesa, os dedos pairando sobre o teclado. Um novo arquivo se abriu na tela: “Balanço Geral – Exercício Atual”. Mas, desta vez, ele não estava escrevendo números. Estava escrevendo um pedido de demissão.
A porta de seu escritório se abriu. Era a sua secretária, Ana Paula, com um sorriso educado e um envelope em mãos.
“Sr. Marcelo, chegou isto para o senhor. É um pacote lacrado, sem remetente. Apenas o seu nome.”
Marcelo pegou o envelope. Era feito de um papel grosso e escuro, com uma textura estranha. Não havia selo, apenas um símbolo gravado a seco que ele não reconheceu. Sua mão tremeu levemente ao deslacrá-lo. Dentro, havia um único cartão.
Nele, escrita em uma caligrafia elegante e antiga, uma única frase:
“A próxima transação será registrada em outra dimensão. Esteja preparado.”
Por: João Pedro Silveira

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