Uma artista plástica começa a pintar visões de seres de outro mundo após um encontro sombrio.

Uma artista plástica começa a pintar visões de seres de outro mundo após um encontro sombrio.

TERRA DE SOMBRAS

O cheiro de terebentina e esmalte de unhas misturava-se no ateliê de Clara, um casarão colonial em ruínas no bairro da Lapa, no Rio. O sol da tarde filtrava pelas janelas empoeiradas, pintando listras de luz sobre as telas inacabadas, um reflexo da sua própria confusão. As últimas semanas haviam sido um turbilhão. O encontro, numa noite de tempestade, com aquela figura alta e esguia, de olhos que pareciam sugadores de estrelas, na viela escura atrás da sua casa, havia plantado algo estranho dentro dela. Não era medo, não era um pesadelo comum. Era uma invasão silenciosa, uma ressonância que agora se manifestava em cores e formas que ela nunca havia concebido.

Antes, Clara pintava a beleza crua da cidade: o suor no pescoço do vendedor de coco na praia, a melancolia dos telhados sob a garoa, a vitalidade vibrante das favelas abraçadas pelas montanhas. Agora, suas telas se retorciam com formas bioluminescentes, anatomias impossíveis, paisagens etéreas que pareciam pulsar com uma vida alienígena. As cores eram intensas, vibrantes demais para o mundo que conhecia, mas ao mesmo tempo carregadas de uma tristeza profunda, de uma saudade que Clara não sabia de onde vinha.

Dona Conceição, sua vizinha de décadas, a senhora que vendia bolinhos de bacalhau na esquina e cujas fofocas eram tão picantes quanto o tempero, já a olhava com desconfiança. “Menina Clara, o que é isso que você anda pintando? Parece coisa de filme de terror.” Clara apenas sorria, um sorriso cansado que mal alcançava os olhos. Como explicar a Dona Conceição que as pinceladas de um azul elétrico que sangravam em um violeta profundo não eram fruto de sua imaginação, mas sim um eco daquele olhar, daquela presença que a tinha tocado?

Seu namorado, Pedro, um arquiteto pragmático, tentava racionalizar. “Talvez seja o estresse, Clara. Você anda trabalhando demais, sem dormir direito. Essa coisa do encontro, deve ter te abalado mais do que você pensa.” Ele acariciava seu cabelo, buscando conforto em gestos conhecidos, mas Clara sentia uma distância crescente entre eles. Pedro não conseguia ver as linhas que se contorciam nas sombras do quarto, as formas que flutuavam no ar rarefeito.

Uma noite, a tinta escorreu da sua mão com uma urgência que a assustou. Ela não estava mais no controle. A tela se preencheu com um ser esguio, com múltiplos membros finos e delicados, cujos olhos negros refletiam um universo de estrelas distantes. Sua pele parecia feita de luz fria, e de sua figura emanava uma aura de solidão ancestral. Ao lado, um campo de flores que brilhavam no escuro, com pétalas que se abriam em formas geométricas complexas, desdobrando-se em espirais perfeitas. Era belo, assustadoramente belo.

Clara começou a sentir uma fome que não era de comida. Uma fome por conhecimento, por compreender aquelas visões. Ela passava horas na biblioteca pública, vasculhando livros de astrofísica, filosofia antiga, buscando paralelos, conexões. Lia sobre dimensões paralelas, sobre a consciência coletiva, sobre o véu que separa o conhecido do desconhecido.

Uma das pinturas mais perturbadoras mostrava um vórtice de cores, um portal pulsante, do qual emergiam mãos finas, tocando delicadamente a superfície da Terra. Clara sentia um arrepio ao vê-las, uma mistura de repulsa e atração irresistível. Era um convite? Uma advertência?

Ela sabia que estava mudando. As noites eram povoadas de sussurros inaudíveis, de sensações de presença. Sentia-se conectada a algo vasto e inescrutável. Uma tarde, sentada no banco da praça XV, observando as crianças brincando, sentiu uma pontada de profunda saudade. Saudade de quê? De um lugar que nunca visitou? De um tempo que nunca viveu?

Dona Conceição, ao passar com sua cesta, parou e a olhou com um misto de pena e temor. “Menina, você anda esquisita. Esses quadros não são coisa nossa.”

Clara apenas meneou a cabeça. Como explicar que as cores que sangravam em suas telas eram a sua nova linguagem? Que as figuras alienígenas eram os seus demônios, sim, mas talvez também os seus anjos?

Um dia, ao terminar uma tela que retratava um céu de duas luas, uma vermelha e outra azul-cobalto, Clara sentiu uma paz estranha. A pintura parecia exalar uma melancolia serena, um conhecimento silencioso. Ela sabia que a linha entre o seu mundo e aquele outro havia se tornado tênue, quase imperceptível.

Olhou para suas mãos, sujas de tinta. Eram as mesmas mãos que antes retratavam a realidade palpável. Agora, elas pintavam os ecos de um toque de outro mundo. A questão que a assombrava não era mais como parar, mas sim o que viria a seguir. Aquelas visões eram um dom ou um fardo? E a grande pergunta, que pairava no ar denso do seu ateliê, como o aroma de tinta, era se ela estava, inadvertidamente, pintando a sua própria partida.


Por: Catarina de Assis Mendonça

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