No seu trigésimo aniversário, um jardineiro encontra uma flor que floresce apenas em momentos de genuína felicidade, e ele precisa protegê-la.
O Dia da Flor Amarela
O sol da manhã acariciava o rosto de Joaquim, já marcado pelos anos de trabalho sob o céu aberto. Trinta anos. Parecia que fora ontem que as mãos pequenas dele se misturavam à terra sob a supervisão paciente do avô, Dona Eulália, sua vizinha de muro que mais parecia uma segunda mãe. Na varanda caiada de branco, com as trepadeiras de bougainvillea disputando espaço com o tempo, Joaquim preparava seu café preto, forte, sem açúcar, como a vida lhe ensinou a ser. A brisa leve trazia o cheiro úmido do mato, o murmúrio distante de cachorros e o burburinho preguiçoso do bairro.
Seu jardim era um santuário em meio ao asfalto. Ali, ele não era Joaquim, o jardineiro que ganhava uns trocados capinando e plantando para quem podia pagar. Ali, ele era apenas Joaquim, o guardião. Um guardião de pétalas, de folhas, de raízes que contavam histórias silenciosas. Hoje, porém, algo parecia diferente. Uma vibração sutil no ar, um prenúncio que ele não sabia decifrar.
Enquanto podava os galhos secos do pé de jabuticaba, um brilho chamou sua atenção. No canteiro de margaridas que ele mesmo havia plantado há anos, um broto singular emergia, de um amarelo tão intenso que parecia capturar a luz do sol. Não era uma margarida. As pétalas eram delicadas, quase translúcidas, e exalavam um perfume doce e inebriante, diferente de tudo que ele já sentira.
Com a delicadeza que reservava para as espécies mais raras, ele se ajoelhou. Ao tocar a haste com a ponta do dedo, sentiu uma energia morna percorrer seu corpo. A flor, como que sentindo sua presença, desabrochou completamente, em um espetáculo silencioso e sublime. Era a coisa mais linda que Joaquim já vira.
“Que coisa mais linda!”, ele murmurou, e um sorriso genuíno, daqueles que raramente afloravam em seu rosto endurecido, iluminou-o. E então, ele se lembrou das histórias que a avó lhe contava, da flor que desabrochava em momentos de felicidade pura. A Flor da Aurora, ela a chamava.
A notícia, como era de se esperar, correu. Dona Eulália, com seus olhos perspicazes por trás dos óculos grossos, foi a primeira a notar a mudança em Joaquim. “Que cara é essa, moleque? Viu anjo passando?”, ela brincou, mas seu olhar denunciava a curiosidade. A Flor da Aurora. Ela reconheceu.
Logo, vizinhos curiosos começaram a espiar por cima do muro, o burburinho aumentando. A fama da flor, e a aura de felicidade que parecia emanar de Joaquim, atraíram outros. Aos poucos, gente que ele mal conhecia, pessoas com problemas que se arrastavam como hera em muros velhos, começaram a aparecer. Tinham ouvido falar da flor que trazia sorte, que realizava desejos.
Um homem com a testa franzida e os ombros caídos, um ex-morador que voltara de longe para tentar a vida novamente, pediu para ver a flor. Joaquim hesitou. A felicidade que a flor representava era dele. Era um momento íntimo, sagrado. Mas o desespero nos olhos do homem era palpável.
Naquela tarde, Joaquim levou o homem até a Flor da Aurora. Ele sentiu a tensão diminuir no ar. O homem, contemplando o espetáculo amarelo, suspirou profundamente. Algo na flor, ou na serenidade que ela parecia inspirar, tocou-o. Pela primeira vez em meses, ele sorriu. Um sorriso pequeno, hesitante, mas real. A flor, como que respondendo, brilhou com mais intensidade.
Os dilemas começaram a se apresentar como ervas daninhas. Joaquim percebeu que a presença da flor não trazia apenas felicidade, mas também atraía as preocupações alheias. Pessoas queriam sentir aquela alegria, mas esqueciam que a felicidade genuína era uma conquista individual, não um empréstimo. Ele se sentia um intermediário, um guardião de um bem que não lhe pertencia totalmente.
Havia o temor constante. E se algo acontecesse com a flor? E se um desavisado, com a melhor das intenções, tentasse arrancá-la? E se a maldade alheia, a inveja velada, a ganância disfarçada, a atingisse? Ele passava horas observando-a, certificando-se de que nenhum inseto daninho ousasse pousar em suas pétalas. Dormia mal, sonhando com ventos fortes e chuvas torrenciais.
Um dia, uma mulher, conhecida no bairro pela sua amargura constante, aproximou-se. “Joaquim”, ela disse, a voz áspera, “quero que essa flor me traga a felicidade que nunca tive. Dê-me um pedaço dela.”
O coração de Joaquim apertou. Ele olhou para a flor, impecável em sua beleza. Olhou para a mulher, os olhos vazios de esperança. E então, ele fez algo inesperado.
“Senhora”, ele começou, a voz baixa e firme, “esta flor não pode ser arrancada. Ela floresce no coração, não na terra. E o coração dela, o meu, está aqui.” Ele apontou para o peito. “A flor apenas mostra o que já existe. Se a senhora busca a felicidade, talvez precise olhar para dentro, não para fora.”
Ele não sabia se suas palavras haviam alcançado a mulher. Ela se afastou sem dizer mais nada, o rosto imutável. Joaquim ficou sozinho com sua flor, com seus trinta anos, com o peso do mundo em suas mãos. O sol se punha, pintando o céu de tons alaranjados e púrpuras, refletindo nas pétalas da Flor da Aurora. E ele se perguntou, enquanto a noite caía sobre seu pequeno paraíso, se a verdadeira felicidade não era a capacidade de proteger e compartilhar a beleza, mesmo que isso trouxesse consigo o fardo da responsabilidade. A flor, silenciosa, parecia guardar segredos que iam muito além de seu próprio desabrochar.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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