A Tinta e o Silêncio
Os dedos de Clara, finos e manchados de óleos de terebintina, traçavam levemente a moldura antiga, um emaranhado de ouro envelhecido que guardava um segredo. Aos trinta anos, com a alma ainda povoada por anseios juvenis e a raspagem do fim de um relacionamento que se desfez como tinta diluída em água, ela encontrou “O Lamento de Aurora” numa feira de antiguidades em Lapa, um achado improvável em meio a caixas empoeiradas de objetos esquecidos.
O quadro, pequeno, mas de uma intensidade avassaladora, retratava uma mulher à beira de um penhasco, o olhar perdido no horizonte tempestuoso, uma flor vermelha desabrochando teimosamente em seu peito. A pincelada era audaciosa, mas carregada de uma melancolia palpável. Quem era Aurora? Que lamento ecoava em suas veias pintadas? A obra, sem assinatura aparente, era um enigma que ressoava com a própria inquietação de Clara.
Clara, sempre mais confortável no silêncio do ateliê, onde telas em branco a convidavam a criar mundos, sentiu-se invadida por uma necessidade premente de conhecer a artista. Era como se a tinta do quadro tivesse impregnado seu próprio sangue. Começou a pesquisar, primeiro nas velhas livrarias do centro, depois em arquivos públicos, folheando jornais antigos e catálogos de exposições esquecidas. As tardes quentes e úmidas do Rio de Janeiro se tornavam o pano de fundo de sua busca: o cheiro de maresia misturado ao burburinho da cidade, o suor que grudava na nuca, o som distante de um samba ecoando de uma janela aberta.
Descobriu um nome: Leonor Vasconcelos. Uma artista marginalizada, cujas obras, segundo breves menções em artigos esquecidos, possuíam uma força incomum. A maioria dos textos a descrevia como reclusa, uma alma atormentada. Clara imaginava Leonor em algum ateliê em Santa Teresa, o vento uivando pelas ladeiras, o aroma de café fresco pairando no ar. Seria possível que “O Lamento de Aurora” fosse um auto-retrato velado de sua própria dor?
A investigação a levou a um pequeno casarão tombado na Glória, onde um sobrinho-neto de Leonor, um senhor de oitenta anos com olhos tão azuis quanto o céu de um dia claro, guardava o legado disperso da tia. Seu nome era Otávio, um homem de fala mansa e memória seletiva, que ofereceu a Clara um chá de hortelã com um aroma terroso. Sentados em poltronas de veludo puído, Otávio contou fragmentos da vida de Leonor: a paixão ardente por um poeta boêmio que a abandonou grávida, o isolamento forçado, a arte como refúgio e grito.
“Ela pintava os sentimentos que não conseguia expressar em palavras”, disse Otávio, com a voz embargada. “Aurora… ah, Aurora era a encarnação daquela melancolia que a consumia, mas também da força que ela encontrava para seguir em frente.”
Clara sentiu um nó na garganta. A pintora do quadro e a pintora que ela tentava desvendar se fundiam em sua própria empatia. Otávio a conduziu ao pequeno quarto onde Leonor passou seus últimos anos. O cheiro de mofo e de tinta antiga ainda pairava no ar. Havia esboços, cartas rasgadas, e em um canto, uma caixa de madeira fechada com um pequeno cadeado. Otávio, após hesitar, entregou a Clara uma chave enferrujada.
Dentro, Clara encontrou um diário encadernado em couro, as páginas amareladas e repletas de uma caligrafia elegante, mas trêmula. As palavras de Leonor a abraçaram em um turbilhão de emoções: a dor da perda, a solidão avassaladora, mas também lampejos de esperança, a resiliência inabalável da alma que se agarrava à arte como a última âncora. E ali, entre as anotações sobre as cores do pôr do sol no Leme e a brutalidade do preconceito, Leonor descrevia a pintura de Aurora. Não era um lamento, mas um grito de força, a beleza de uma flor que insiste em florescer em meio à desolação.
Clara deixou o casarão com o diário em mãos, o coração pulsando num ritmo novo. Ela olhava para a cidade, as luzes se acendendo, o céu assumindo tons de roxo e laranja, e via em cada detalhe o reflexo da arte de Leonor, da sua própria jornada. “O Lamento de Aurora” não era mais um enigma, mas um eco, um convite à introspecção. A busca por Leonor a havia levado a um encontro profundo consigo mesma. E agora, com as mãos ainda manchadas de tinta, Clara sentia a necessidade de responder a esse eco com suas próprias cores, com sua própria história, sabendo que a jornada da arte, como a vida, jamais termina, apenas se transforma, deixando sempre uma porta entreaberta para o que ainda virá.
Por: Ricardo Soares Guedes

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