Aos trinta anos, um relojoeiro descobre que pode atrasar o tempo para consertar memórias perdidas.
Aos trinta anos, um relojoeiro descobre que pode atrasar o tempo para consertar memórias perdidas.
**O Tique-Taque da Saudade**
O cheiro de graxa e óleo de máquina pairava no ar abafado da pequena oficina de Manuel. Fitas cassete com sucessos dos anos 80, um rádio tocando MPB nostálgica e a luz amarelada de uma luminária sobre a bancada formavam o cenário habitual de sua vida. Aos trinta anos, Manuel era um relojoeiro por ofício e por vocação, suas mãos calejadas desvendando os intrincados mecanismos que governavam o tempo em relógios de pulso, de parede, de bolso. Mas havia um tempo que ele não conseguia consertar: o tempo da memória.
O gatilho veio com o aniversário de Dona Elvira, sua vizinha de longa data. A senhora, com seus cabelos brancos como algodão e olhos que já viram tantas primaveras que pareciam carregar um eterno crepúsculo, esquecia-se cada vez mais. Naquele dia, ela o chamou, a voz embargada, para lhe mostrar uma fotografia desbotada: um homem sorrindo, jovem, com um bigode elegante. “Este era meu João”, disse ela, um fio de lágrima teimando em cair. “Ele tocava violão… e eu dançava. Mas esqueci a melodia. Não lembro mais como ele cantava.”
Manuel, que sempre admirou a serenidade de Dona Elvira, sentiu um aperto no peito. Olhou para o relógio de bolso antigo que ela lhe entregara para consertar – um presente de João, segundo ela. Um mecanismo parado, como a memória que se recusava a girar. Ao tocar as engrenagens frias, sentiu uma corrente estranha percorrer seus dedos, uma vibração sutil, quase imperceptível. E, de repente, por um instante que pareceu se esticar em eternidade, o murmúrio distante de uma canção veio à sua mente, a melodia de um violão, a risada de um homem. Foi tão fugaz quanto um suspiro, mas real.
Nos dias seguintes, Manuel experimentou. Segurava os relógios, concentrava-se nas engrenagens, nos ponteiros imóveis, e tentava evocar as histórias por trás deles. Um velho relógio de pêndulo, trazido por um senhor que dizia ter pertencido ao seu avô. Manuel, ao manusear o pêndulo parado, sentiu o cheiro de terra molhada, o som de pés descalços correndo em um quintal antigo. De repente, viu a imagem de um menino, o avô do cliente, colhendo mangas de uma mangueira imponente. A imagem era vívida, o sabor da manga madura quase real em sua boca.
Ele percebeu. Quando um relógio parava, quando uma memória parecia perdida, ele podia, ao tocá-lo, “atrasar” seu próprio tempo. Era como se ele pudesse retroceder alguns segundos, minutos, talvez horas, em sua percepção, e capturar ecos, fragmentos do passado associados ao objeto. Não era um controle do tempo em si, mas uma ressonância, uma habilidade de sintonizar com as ondas de memórias adormecidas, como se o próprio tempo contido nos relógios fosse um portal.
A descoberta, porém, veio acompanhada de uma solidão peculiar. Como compartilhar algo tão etéreo? Ele tentou explicar para o Carlos, seu aprendiz, um garoto de vinte anos com a cabeça cheia de música eletrônica e o futuro no celular. Carlos apenas riu, achando que Manuel estava viajando. “Isso é coisa de filme, seu Manuel”, disse ele, enquanto limpava um bracelete de ouro com um polidor.
Manuel continuou, agora com um propósito novo, tingido de melancolia. Passou a receber pedidos inusitados. Uma mulher com um broche de pérolas quebrado, querendo reviver o momento em que o ganhou de sua mãe falecida. Manuel fechou os olhos, segurou o broche, e sentiu o abraço apertado da mãe, o cheiro de lavanda do seu perfume, a voz dela dizendo “Este é para você guardar meu amor”. Ele descreveu a cena para a mulher, com detalhes que a fizeram chorar de saudade e alívio. Outro, um chaveiro de carro antigo, com a lembrança de um primeiro amor, uma viagem de verão com as janelas abertas e o vento nos cabelos.
Mas havia um limite. Ele não conseguia fabricar memórias, apenas recuperar fragmentos do que já existiu. E o preço, ele sentia, era alto. A cada viagem, a cada fragmento resgatado, uma parte de sua própria memória parecia se diluir um pouco mais, como um relógio de areia que, ao virar, perde um pouco de sua substância. Ele se pegava confuso com pequenos detalhes de seu próprio passado, com nomes, datas.
Um dia, a jovem Ana, dona de um pequeno café na esquina, trouxe um anel de prata, embaçado, sem brilho. “É do meu avô”, disse ela, com um nó na garganta. “Ele me ensinou tudo sobre café. Mas ele se foi tão rápido. Eu só queria ouvir a voz dele mais uma vez, dizendo para eu não ter medo de experimentar.”
Manuel pegou o anel. A oficina estava silenciosa, apenas o tique-taque distante de um relógio de parede. Ele fechou os olhos. Sentiu o calor do sol, o aroma de grãos torrados, a textura áspera de um saco de café. E ouviu. A voz rouca, mas gentil, do avô de Ana: “Minha filha, a vida é como o café. Às vezes amarga, às vezes doce. O importante é não ter medo de descobrir seu sabor.”
Ele abriu os olhos e viu Ana, os olhos marejados, um sorriso triste mas grato em seus lábios. E naquele momento, Manuel se perguntou: será que ele estava consertando as memórias dos outros, ou apenas adiando o seu próprio esquecimento? A vida, afinal, é feita de um tempo que, mesmo quando consertado, continua a correr. E o que resta, quando o último tique-taque se cala, são os ecos daquilo que foi vivido. Ele olhou para suas mãos, que ainda pareciam tremer com a reverberação do passado. O que viria depois do último fio de memória? O vazio? Ou uma nova melodia, ainda não descoberta? A resposta, como o tempo, permanecia em movimento, aguardando o próximo ponteiro a se mover.
Por: Marina Rocha Antunes

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