O Voo das Asas Invisíveis

O Voo das Asas Invisíveis

O sol da manhã ainda lutava para romper a névoa úmida que pairava sobre o manguezal, tingindo as águas barrentas de um cinza fosco. Para Elisa, aquele era o cheiro de casa. Um cheiro de sal, de decomposição e de vida que se renovava incansavelmente, um perfume que poucos apreciavam, mas que para ela era o alento. Seu velho Fiat Uno, em tons de azul desbotado pela maresia e pelas incontáveis viagens, era seu companheiro fiel. A porta rangia com um lamento familiar enquanto ela o estacionava precariamente na beira da estrada de terra batida, ali onde a civilização parecia hesitar em se instalar.

Naquele dia, o chamado veio de uma denúncia anônima, sussurrada no cansaço de uma voz feminina pelo telefone público da praça. Um cachorro. Um cachorro magro, esquecido, preso a uma corda curta e enferrujada em um terreno baldio, cercado por entulho e a indiferença palpável dos vizinhos.

Elisa desceu do carro, a terra úmida grudando em suas sandálias gastas. A coleira de couro, marcada por arranhões e resquícios de pelos de outros resgates, repousava em seu pescoço. Seus braços eram magros, mas fortes, com veias saltando sob a pele curtida pelo sol. Seus olhos, de um verde profundo, carregavam a fadiga de quem viu demais, mas a centelha de uma esperança teimosa.

O terreno era um quadro desolador. Um cachorro de porte médio, com pelos emaranhados e olhar perdido, uivava baixo, preso a um pedaço de madeira podre. A corda, fina e cruel, afundava em seu pescoço. Pedaços de telha quebrada, sacos plásticos e a carcaça de um pneu velho compunham o cenário sombrio. Pela fresta de um muro baixo, uma criança espiou, o rosto curioso, mas logo desviou o olhar ao sentir a presença de Elisa. A velha indiferença que se aprende desde cedo.

“Calma, amiguinho”, disse Elisa, a voz suave, um bálsamo no ar carregado de desespero. Ela se aproximou devagar, com movimentos lentos e deliberados, oferecendo a palma da mão aberta. O cachorro recuou, ganindo baixinho, o corpo tremendo. O medo, aprendido a duras lições.

O nó da corda era apertado, cruel. Elisa desdobrou sua pequena tesoura de arame, a lâmina fria contra a pele do animal. O trabalho exigia paciência, cuidado. Enquanto cortava, sentiu a respiração acelerada do cachorro em sua mão, o coração batendo descompassado. Tantas vezes sentiu aquele ritmo, o medo e a esperança se misturando em cada batida.

Os vizinhos observavam de longe. Alguns com um misto de desprezo e curiosidade, outros com a resignação de quem já viu aquilo antes. “Outra vez a maluca do cachorro”, murmurou um homem, jogando bituca de cigarro no chão sem se importar. Elisa ignorava. O silêncio deles, mais ensurdecedor que qualquer palavra.

Finalmente, a corda se rompeu. O cachorro, livre, hesitou por um instante, como se não acreditasse. Então, com um leve meneio de cabeça, ele se encolheu perto de Elisa, buscando o contato que tanto negaram a ele. Um gesto singelo, mas que dilacerou Elisa por dentro. Um grato mudo, um suspiro de alívio que ela guardou para si.

Ela o pegou no colo, o peso inesperado em seus braços. O corpo magro, a fome que roía as entranhas. No carro, ele se aninhou no banco, os olhos ainda desconfiados, mas com um fio de algo novo: a possibilidade. Elisa deu-lhe um pouco de água morna e um pedaço de biscoito que guardava em sua bolsa. Ele comeu com uma avidez dolorosa, cada mordida um lembrete do abandono.

No caminho de volta, o rádio tocava uma música antiga, melancólica. As árvores se alinhavam na beira da estrada, as copas verdes se beijando sob o sol que agora tentava dominar o céu. Elisa sentiu a pressão familiar em seu peito. A vitória era efêmera. Sabia que, em algum lugar, outro animal esperava. Outro corpo esquecido, outra vida à deriva. E o cansaço, pesado como o entulho daquele terreno, a assaltava.

Chegando em casa, seu refúgio, um terreno baldio transformado em santuário, ela o limpou, deu-lhe comida e um lugar quentinho para dormir. O cachorro, agora batizado de “Esperança” pela sua própria teimosia, dormia profundamente, os roncos suaves quebrando o silêncio da noite. Elisa sentou-se em sua cadeira velha, observando-o. A luta era diária, exaustiva. A indiferença pública era um oceano imenso e traiçoeiro. Ela era apenas uma gota d’água lutando contra a maré.

Em algum lugar, sob a mesma lua que agora banhava a cidade, uma outra voz sussurrava um pedido de socorro. E Elisa sabia que, quando o dia amanhecesse, o Fiat Uno desbotado a levaria novamente, rumo a mais um voo de asas invisíveis, na esperança de encontrar um eco em corações que, talvez, ainda não tivessem se fechado por completo. A pergunta que pairava, silenciosa e persistente: até quando?


Por: Beatriz Almeida Vianna

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *