A Voz Que Floresce
A luz da manhã, ainda tímida, pincelava os prédios de concreto aparente do Centro de São Paulo, encontrando frestas entre os prédios e iluminando a poeira dançante no ar carregado de promessas e estresse. Clara, com seus cabelos negros presos num coque despretensioso e óculos de aro fino que deslizavam pelo nariz, suspirou. Mais um dia, mais um nó a desatar.
Ela trabalhava em um pequeno escritório apertado no décimo andar, um cubículo onde o cheiro de café requentado e papel se misturava. Do lado de fora, o rugido constante da cidade era um lembrete da babel que ela tentava domar. Clara era tradutora, uma ponte discreta entre mundos. Hoje, o desafio era um contrato complexo de intercâmbio cultural entre uma renomada orquestra brasileira e um festival de jazz em Nova Orleans.
O texto, denso de jargões musicais e nuances culturais, exigia mais do que vocabulário. Exigia alma. Ela sentia o ritmo do samba pulsando nas palavras que descreviam a melodia sincopada do jazz, imaginava o calor úmido do Brasil contrastando com o frio cortante da metrópole americana. Cada vírgula era um passo, cada paráfrase um acorde.
Foi durante a revisão final, com os olhos já ardendo e o peso da responsabilidade nas pálpebras, que o telefone tocou, estridente. Era Maurício, o gerente do projeto, com a voz tensa.
“Clara, recebi um e-mail do pessoal de Nova Orleans. Eles estão… confusos. Dizem que a tradução não reflete o espírito do nosso projeto. Que soa… artificial.”
O estômago de Clara deu um nó. Artificial. A palavra reverberou como uma pedrada. Ela, que dedicara horas imersa na essência de cada frase, tentando capturar o suingue, a melancolia, a exuberância, a sutileza de duas culturas tão distintas, mas com tantos pontos de contato.
“Maurício, eu… eu me esforcei para ser fiel não apenas às palavras, mas ao sentimento. Usei termos que evocam a nossa música, a nossa forma de falar. Para eles, um termo pode significar uma coisa, mas para nós, aqui, tem outra ressonância.”
“Eles não entenderam, Clara. Disseram que parece que você inventou coisas. Que estamos… enganando eles.”
A acusação era um soco no estômago. Falsidade. Ela sentiu o rosto queimar. Clara era conhecida pela precisão, pela ética. Mas como explicar para quem estava do outro lado do oceano, sem ter pisado em terras brasileiras, sem ter sentido o peso do sol na pele ou a melodia inesperada de um choro na esquina, o que significava “saudade” num contexto musical, ou como o “malemolência” se traduzia numa performance vibrante?
Ela sabia que a tradução perfeita, naquela dimensão, era um mito. Traduzir era sempre interpretar, recontar, criar um novo texto que dialogasse com o original. E nessa dança, algo se ganhava e algo se perdia. Mas ela acreditava que, com sensibilidade e profundo conhecimento das culturas, a perda podia ser minimizada, a conexão fortalecida.
Nos dias seguintes, a tensão pairou no escritório. Maurício pressionava, tentando mediar o conflito. Clara, por sua vez, mergulhou em artigos sobre jazz brasileiro, ouviu entrevistas antigas de músicos, buscou entender o *motivo* por trás da confusão. Ela se sentia uma artista incompreendida, uma artesã cujas criações, cheias de intenção e cuidado, eram vistas como imitações grosseiras.
Uma noite, sentada à janela de seu pequeno apartamento em Pinheiros, observando as luzes da cidade se acenderem como vaga-lumes, Clara pegou um caderno e uma caneta. Não eram palavras formais de e-mail, mas anotações pessoais.
*”A saudade de um trompetista improvisando não é apenas a falta de alguém. É a melodia que ecoa na alma, uma promessa de reencontro que se esvai a cada nota. Como traduzir a melodia do vento nas folhas de mangueira para o rugido de um saxofone que busca a alma da cidade?”*
Ela escrevia não para Maurício, nem para Nova Orleans, mas para si mesma. Tentando decifrar a própria dificuldade, o abismo entre a intenção e a percepção. Percebeu que, às vezes, a autenticidade que ela tanto buscava era julgada por quem não possuía as chaves para desvendar seu significado profundo. A falsidade era uma lente distorcida pela falta de experiência, pela ausência do contexto vivo.
Na manhã seguinte, Clara não enviou um novo e-mail com justificativas. Em vez disso, gravou um áudio curto, repleto de sua voz calma e melodiosa. Não era uma explicação técnica, mas um convite. Ela falou sobre o groove que une o samba ao blues, sobre a melancolia que permeia tanto a bossa nova quanto as baladas de jazz. Mencionou a importância do silêncio entre as notas, a força da pausa. E, com um sorriso que ela esperava que pudesse ser sentido através do áudio, convidou-os a sentirem a música que ela tentara traduzir, em vez de apenas lê-la. A convidou a, se um dia pudessem, visitarem o Brasil e ouvirem essa música nos acordes, no riso das pessoas, na poeira dançante de uma rua qualquer de São Paulo.
Não houve resposta imediata. O contrato continuou suspenso, numa dança de silêncios e incertezas. Mas Clara, ao final do dia, sentiu um leve alívio. Ela havia colocado sua voz, sua essência, na ponte que construíra. Se a outra margem a ouviria, se entenderia a melodia de sua alma em meio ao ruído da acusação, ela não sabia. Mas sabia que sua voz, mesmo que incompreendida por alguns, continuava a florescer, tentando conectar o que a distância e a falta de perspectiva teimavam em separar. E essa, para ela, já era uma forma de vitória.
Por: Marina Rocha Antunes

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