O Eco da Leoa
O estúdio de dublagem, um cubo acusticamente tratado no coração de Pinheiros, cheirava a café forte e à ansiedade de quem vive de vender sua voz. Sofia, com seus quarenta e poucos anos e um timbre que se tornara familiar para milhões, respirava fundo o ar mofado. Havia quinze anos, ela era a voz de Elara, a Leoa Valente, heroína de uma série de animação que aterrissara em solo brasileiro como um furacão. Elara, destemida, com um rugido que ecoava justiça e empatia, era a bússola moral de uma geração. E Sofia, com sua ressonância particular, era a alma da Leoa.
Ela sabia os trejeitos de Elara melhor do que os seus próprios. A inclinação da cabeça ao duvidar, a força controlada no grito de guerra, a doçura quase imperceptível ao consolar um filhote órfão. Esses sussurros, gritos e suspiros eram a sua vida, tecendo um fio invisível entre o estúdio e as casas de tantas famílias. Ela sentia o peso da responsabilidade, a entrega de um papel que transcendia a mera interpretação.
Um dia, o telefonema chegou. Não era o chamado usual para gravar mais um episódio, mas uma convocação para uma reunião com a produção. O salão, antes vibrante com a energia de Sofia e seus colegas, estava estranhamente silencioso. No centro, sentada com uma postura impecável que Sofia sabia não vir de anos de microfone, estava Isabela Vasconcelos. Isabela, o nome que estampava as capas de revistas, cujas entrevistas sobre “intérpretação de verdade” eram exibidas em horários nobres.
O produtor, um homem suado e apressado, explicou o “novo direcionamento criativo”. Uma “estrela” para revitalizar a franquia. Sofia sentiu o chão fugir, não pela fama de Isabela, mas pela desvalorização, pela súbita obsolescência. Era como se anos de entrega, de suor derramado em sessões extenuantes, de noites em claro para encontrar a nuance perfeita, tivessem sido apagados por um nome mais pomposo.
Naquela noite, em seu pequeno apartamento em Perdizes, com o cheiro de pão de queijo fresco pairando no ar, Sofia olhou para o pôster de Elara na parede. O olhar determinado da leoa parecia desafiá-la. Por um instante, ela se sentiu como um eco, uma reverberação de algo que já não era mais seu. Pensou nos depoimentos que recebera ao longo dos anos: pais que diziam que Elara ajudou seus filhos a superar medos, crianças que se espelhavam na coragem da heroína. Isso era o que importava.
No dia seguinte, a voz de Elara na nova temporada era diferente. Era impecável, tecnicamente perfeita, mas faltava a aspereza familiar, a vulnerabilidade que Sofia injetara em cada sílaba. Era uma Elara polida, uma versão de vitrine. Sofia sentiu uma dor surda, um luto silencioso. Ela, que dera vida a tantas vozes, personagens que inspiravam, agora se via silenciada.
Passou semanas vagando pela cidade, observando os detalhes que antes pareciam banais: o barulho dos bondes em Santa Teresa, as conversas animadas em volta das mesas de boteco em Copacabana, o aroma adocicado das frutas no Mercado Municipal. Tudo parecia vibrar com uma vida que ela, por um tempo, havia traduzido em outra linguagem.
Um sábado, em um parque público, ela viu um grupo de crianças brincando. Uma menina, com um boneco de Elara nas mãos, rugia com uma voz aguda e cheia de entusiasmo. A menina não a imitava perfeitamente, mas em sua garganta havia a mesma faísca de coragem, a mesma alegria de ser quem se é. Sofia sorriu. O eco da leoa não se calava, apenas mudava de tom. Ela se levantou, o sol aquecendo seu rosto, e seguiu seu caminho, o som das risadas infantis a acompanhando, uma nova melodia em sua própria voz. Havia outros rugidos a serem descobertos.
Por: Ricardo Soares Guedes

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