O Sopro na Massa de Dona Lurdes

O Sopro na Massa de Dona Lurdes

O ar matinal, ainda fresco e com cheiro de terra molhada depois da garoa noturna, já trazia o aroma inconfundível da padaria de Dona Lurdes. Não era um cheiro qualquer. Era o perfume da vida, o abraço reconfortante que envolvia as casas de taipa e os telhados de barro da pequena vila de São Pedro do Pinhão. Dona Lurdes, com suas mãos grossas e marcadas pela farinha e pelo calor do forno, era a alma desse aroma.

Seus pães, de casca dourada e miolo macio, não eram apenas sustento. Eram pedaços de esperança, pedaços de história, assados com a mesma dedicação com que ela criara seus filhos. O pão de sal, o pão sovado com um toque de erva-doce, o bolo de fubá fofo que era o deleite dos domingos. Para São Pedro do Pinhão, Dona Lurdes era a fonte, a rocha onde a fome jamais encontrava guarida.

Mas os tempos estavam mudando, e a vila, antes tão pujante, sentia o peso da seca que castigava a terra. Os sacos de farinha chegavam menos, o óleo vegetal virava artigo de luxo, e o açúcar, esse doce companheiro, parecia ter sumido do mercado. Dona Lurdes via a preocupação nos olhos das vizinhas, os cochichos sobre as colheitas perdidas, a mercearia do Seu Zé cada vez mais vazia.

Ela encolhia os ombros, fingindo força que não sentia. Como explicar que a farinha estava no fim? Que o fermento, aquele milagre que transformava a água e a farinha em vida, estava se tornando escasso? Dona Lurdes não era de se abater. Sua avó, que a ensinara a arte do pão, dizia que o segredo estava no “sopro”. Um sopro de fé, de carinho, de resiliência.

Ela começou a esticar a massa, a usar menos farinha em cada fornada, a misturar grãos de milho e de mandioca, tentando emular a textura e o sabor que todos conheciam. O pão de milho, antes um luxo ocasional, tornou-se o pão do dia a dia. O bolo de fubá ganhou a companhia de pedacinhos de jabuticaba, colhidas às escondidas em quintais alheios.

Maria Clara, a menina de olhos vivos que vendia temperos na feira, a via trabalhando até tarde, com a luz fraca do lampião dançando em seu rosto cansado. “Dona Lurdes, mas esse pão está diferente”, disse um dia, com a inocência que a verdade muitas vezes confere. Dona Lurdes sorriu, um sorriso que não alcançou os olhos. “É um pão novo, minha filha. Um pão que precisa de mais amor.”

E era verdade. Ela misturava menos ingredientes, mas mais sentimentos. A preocupação com o filho que trabalhava longe e não mandava notícias. A saudade do marido que a deixara cedo demais. A esperança de que a chuva voltasse a cair. Tudo isso ia para a massa, temperando cada pão com uma força que os ingredientes, por si só, jamais poderiam conferir.

Um dia, a farinha acabou. O último saco, reservado para um pão especial, um pão de festa, ficou sobre a bancada, tentadoramente vazio. Dona Lurdes olhou para o sol tímido que tentava furar as nuvens cinzentas. Respirou fundo, sentindo o cheiro mofado dos sacos vazios.

Em vez de fechar a porta, ela pegou um pequeno saco de tecido, quase vazio, e saiu para a vila. Foi de porta em porta, com o saco nas mãos. “Quem tem um punhado de farinha? Uma colher de óleo? Um grão de fermento? Qualquer coisa que possa virar pão?”

As vizinhas saíram, tímidas a princípio, depois com mais coragem. Dona Eulália, com a mão trêmula, deu um pouco de seu arroz moído. Seu José, que guardava um pote de gordura de galinha, ofereceu. As crianças, sem entender a gravidade, traziam pedrinhas polidas, pensando que talvez pudessem virar pão.

Dona Lurdes juntou tudo. Misturou o arroz moído com a pouca farinha que ainda restava, o óleo, o fermento escasso, as sementes que encontrou em casa. Fez uma massa estranha, densa, diferente de tudo que já fizera. O cheiro que saía do forno naquele dia não era o de antes. Era um aroma mais rústico, mais terroso, mas ainda assim, para os ouvidos atentos de São Pedro do Pinhão, era um sopro.

As primeiras mordidas foram tímidas. O gosto era novo, um pouco amargo, um pouco doce, com uma textura que exigia mais mastigação. Mas então, os olhos começaram a se iluminar. Não era o pão de Dona Lurdes de antes, mas era *um* pão. Um pão feito de cooperação, de resiliência, de um fio tênue que os unia na escassez.

Dona Lurdes observou a vila, as crianças brincando com a barriga um pouco mais cheia, os adultos compartilhando um pedaço daquele pão incomum. O sol, finalmente, decidiu brilhar com mais força, pintando o céu com tons de esperança. O aroma do pão diferente pairava no ar, carregando não mais apenas o perfume da vida, mas também o som silencioso de um novo começo. E Dona Lurdes, com as mãos ainda sujas de farinha, sentiu um calor familiar no peito, um sopro que a impelia a continuar, a reinventar, a alimentar sua vila, mesmo quando tudo parecia escasso. A questão que ficava no ar, como o aroma do pão recém-assado, era se aquele sopro seria suficiente para sustentar a todos, para sempre.


Por: Beatriz Almeida Vianna

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *