A Luta de Dona Alzira

A Luta de Dona Alzira

O cheiro persistente de lavanda e umidade pairava no ar do pequeno apartamento no Bairro do Catolé, em Campina Grande. Era ali que Dona Alzira, com seus 72 anos e um corpo que já sentia o peso dos anos, dividia sua rotina com Maria Clara, sua cuidadora há quase cinco anos. Maria Clara, uma mulher de quarenta e poucos anos, com mãos calejadas e um olhar cansado, mas sempre gentil, era a âncora de Alzira em um mar de esquecimento.

“Mais um gole, Dona Alzira, pra fortificar”, Maria Clara dizia, erguendo a colher com o mingau morno, o vapor subindo e aquecendo suavemente o rosto enrugado da idosa. Alzira, com os olhos quase perdidos em alguma lembrança distante, abria a boca com um suspiro resignado. A cada colherada, era um pequeno ritual de cuidado, um ato de resistência contra a fragilidade que avançava.

A relação delas ia além do contrato de trabalho. Maria Clara era a filha que Alzira não teve, a sobrinha querida, a confidente silenciosa. Ela trocava os fraldões com dignidade, escovava os cabelos brancos com ternura, lia as manchetes do jornal com a voz embargada para quem já não as enxergava bem. Quando a dor latejava nas pernas de Alzira, era Maria Clara quem aplicava o unguento, massageava suavemente, trazia o calor da sua própria presença para aliviar o incômodo.

Mas a vida de Maria Clara era um malabarismo constante. O salário, pago em dia incerto pela família de Alzira, mal cobria suas próprias despesas. Os exames médicos que Alzira precisava fazer, os remédios que se multiplicavam, tudo recaía sobre os ombros daquela família que, embora amasse a mãe, também enfrentava suas próprias batalhas financeiras. E o sistema? Ah, o sistema parecia uma montanha intransponível de burocracia, desdém e desinformação.

Certa tarde, a febre de Alzira subiu assustadoramente. O rosto outrora suave agora estava vermelho e suado, a respiração ofegante. Maria Clara, com o coração apertado, pegou o telefone. Ligou para o posto de saúde, para a emergência. As respostas eram sempre as mesmas: “Precisa de encaminhamento”, “Não temos vaga”, “Ligue mais tarde”. A tarde virou noite, e o desespero começou a corroer a serenidade de Maria Clara.

Ela olhou para Dona Alzira, a fragilidade exposta na cama, a respiração cada vez mais difícil. Lembrou-se de quantas vezes ouviu a idosa dizer: “Quero ir em paz, Maria Clara, com dignidade”. E agora, a dignidade parecia ameaçada por algo tão banal quanto a falta de um atendimento rápido.

No dia seguinte, exausta, mas determinada, Maria Clara levava Alzira em um táxi para o hospital público. Na recepção, a cena era desoladora: filas intermináveis, rostos aflitos, um burburinho constante de angústia. Esperaram horas. Maria Clara sentiu o peso da invisibilidade, do descaso. Enquanto segurava a mão trêmula de Alzira, sentiu uma pontada de raiva misturada com tristeza. Ela era a guardiã daquela vida, mas se sentia impotente diante da máquina fria e impessoal.

Quando finalmente foram atendidas, o diagnóstico era simples, um quadro de pneumonia. Mas o tempo perdido, a espera prolongada, haviam agravado a situação. Alzira, após alguns dias de internação, retornou para casa, mais fraca, mas com a serenidade de volta ao olhar.

Naquela noite, Maria Clara preparou um chá de camomila para Dona Alzira. O aroma reconfortante encheu o pequeno quarto. “Obrigada, minha filha”, disse Alzira, a voz embargada. “Você é meu anjo”. Maria Clara ajeitou o travesseiro, acariciou o rosto da idosa. O sistema havia falhado, mas o elo humano, o amor e a dedicação de uma cuidadora, haviam resistido.

Enquanto a cidade dormia lá fora, Maria Clara sentou-se na poltrona ao lado da cama, o corpo exausto, mas a mente alerta. Sabia que a luta não era apenas para Alzira, mas para todas as Alziras e todos os Maria Claras que existiam. O conforto e a dignidade eram direitos, não privilégios. E ela continuaria a ser a guardiã, a voz, a esperança, mesmo que às vezes se sentisse um grão de areia contra um furacão. A questão que ecoava em sua mente era: até quando? E quem mais se importaria?


Por: Ricardo Soares Guedes

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