O Sussurro das Pedras

O Sussurro das Pedras

A cidade antiga, Ouro Preto, parecia suspirar sob o peso do sol da tarde. Cada paralelepípedo, cada varanda de ferro forjado, cada azulejo desgastado pela chuva e pelo tempo guardava uma história, e Clara, com seus trinta e poucos anos e olhos que refletiam o verde das montanhas ao redor, era a guardiã silenciosa dessas narrativas. Ela conhecia os caminhos tortuosos que serpenteavam pelas ladeiras, os atalhos esquecidos que levavam a vistas de tirar o fôlego, e os cantos onde o silêncio falava mais alto que qualquer palavra.

Ele chegou em um carro que reluzia como um espelho, um contraste gritante com a pátina do tempo que cobria tudo ali. Thomas, um nome que soava estrangeiro e distante no burburinho das conversas em português. Era um empresário, de sotaque carregado e olhar que calculava, que via em Ouro Preto não a poesia das suas ladeiras ou a saudade entranhada nas suas igrejas barrocas, mas sim um potencial, um ativo a ser explorado. Ele queria hotéis de luxo, lojas de grife, um “upgrade” que, para ele, significava progresso.

“Você conhece a cidade, senhorita Clara?”, perguntou Thomas, sua voz grave ecoando na Praça Tiradentes. Ele a contratara como guia, mais por insistência do que por convicção. Clara, com sua simplicidade e conhecimento genuíno, o incomodava. Ela não falava de números ou de retornos, mas de Chica da Silva, de Aleijadinho, das revoltas que mancharam aquelas pedras de sangue e esperança.

Clara mostrava-lhe o adro da Igreja de São Francisco de Assis, descrevendo a genialidade de Aleijadinho, a delicadeza das esculturas, a alma exposta em cada traço. Thomas, no entanto, olhava para o terreno ao lado, imaginando onde construir um spa com vista panorâmica. Ele a levava a becos estreitos, escondidos da multidão, onde o aroma do café recém-passado se misturava ao cheiro úmido da terra. Clara contava sobre as casas dos antigos escravos, as histórias de resistência, a vida que teimava em brotar mesmo na adversidade. Thomas via ali o espaço para estacionamento.

Uma tarde, enquanto caminhavam pela Estrada Real, sob o dossel de mangueiras centenárias, Clara parou. “Ali”, disse ela, apontando para uma pequena queda d’água que descia por entre rochas musgosas. “É onde minha avó costumava me trazer. Dizia que as águas levavam as preocupações para longe.” Thomas, em vez de apreciar a beleza serena, perguntou se o local era de fácil acesso para turistas de ônibus.

O dilema de Clara era palpável. Ela amava Ouro Preto. Amava o cheiro da chuva nas pedras, o som dos sinos das igrejas, a forma como o sol pintava os morros no fim do dia. Era sua casa, sua herança. E Thomas, com sua visão fria e implacável, parecia querer roubar a alma da cidade, trocando-a por um brilho superficial. Ela sentia o peso de cada segredo que compartilhava com ele, sabendo que alguns deles poderiam ser usados contra o que ela tanto prezava.

“Não é só um lugar, senhor Thomas”, ela disse uma noite, a voz embargada, depois de ele ter falado sobre a necessidade de “modernizar” o centro histórico. “São memórias. São vidas. Cada pedra tem um nome, uma história. Não podemos simplesmente apagar.”

Thomas apenas a observou, um leve sorriso no canto dos lábios. Ele via nela uma resistência que, para ele, era um obstáculo a ser superado. Na sua visão, o “desenvolvimento” era inevitável, uma força da natureza econômica que Ouro Preto não podia deter.

Um dia, Thomas anunciou que havia adquirido uma antiga fazenda nos arredores, que pretendia transformar em um resort de luxo. Clara sentiu um arrepio. Sabia que aquela fazenda, com suas ruínas e suas nascentes, era um tesouro histórico e ecológico, um lugar que ela visitara em segredo com seu avô, ouvindo histórias de quilombos e de curandeiros.

Ela sabia o que ele pretendia. E, pela primeira vez, Clara sentiu a urgência de lutar. Não com palavras, mas com os segredos que guardava. Os caminhos secretos que levavam a lugares esquecidos, os contos que os mais velhos lhe haviam confidenciado, as histórias que Thomas nunca encontraria nos relatórios financeiros.

A cidade antiga, Ouro Preto, parecia prender a respiração, aguardando a decisão de sua guardiã. E Clara, olhando para as montanhas que abraçavam a cidade, sabia que o sussurro das pedras a chamava para uma batalha que ela estava disposta a travar. Restava saber se os sussurros seriam suficientes para deter o rugido do progresso.


Por: Ricardo Soares Guedes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *