A Sombra na Carteira
O cheiro de café passado e a poeira de livros antigos eram os aromas constantes no pequeno apartamento alugado no bairro do Bixiga, em São Paulo. Mariana, com seus 22 anos espremidos em noites em claro e fins de semana de labuta, sentia o peso de cada xícara, de cada página virada, de cada entrega de panfletos pelas ruas movimentadas. A universidade pública, sonho de tantos, era um luxo caro para ela, não pelas mensalidades, mas pelas despesas que a cercavam: transporte, alimentação, material didático. A bolsa de estudos integral, aquela que viria para aliviar um pouco o fardo, parecia uma miragem a cada edital publicado.
Ela se lembrava claramente daquela tarde chuvosa quando a notícia chegou. A lista, impressa em papel reciclado, afixada no mural do departamento de humanas. Seu nome, em letras pequenas, estava lá. Um nó na garganta, não de alívio, mas de uma ansiedade peculiar. A bolsa era parcial. Setenta por cento. Era melhor que nada, ela se disse, enquanto o frio da chuva parecia penetrar seus ossos. Mas o 70% significava que o restante, os 30% do pesadelo financeiro, ainda a assombrariam.
A decepção inicial se transformou em uma raiva surda quando, alguns dias depois, em uma conversa casual no RU (Restaurante Universitário), ouviu outros estudantes comentando sobre a lista. Um deles, Lucas, filho de um conhecido político local, ostentava com orgulho a notícia de ter conseguido a bolsa integral. Lucas, que aparecia em festas badaladas, que nunca falava sobre trabalho ou dificuldades. Mariana sentiu um arrepio percorrer sua espinha, um arrepio frio e desolador.
Ela não era invejosa. Nunca foi. Apenas queria uma chance justa. Via seus colegas se dedicando com a mesma garra, alguns em situações tão ou mais precárias que a dela. E agora, essa injustiça mascarada. A bolsa integral, destinada a quem mais precisava, parecia ter um critério oculto, um cabresto invisível que puxava para os lados errados.
As noites de Mariana se tornaram mais longas. O turno extra na lanchonete da esquina, com o barulho incessante de pratos e conversas alheias, parecia um sacrifício ainda maior. O cheiro de fritura grudava em suas roupas, e o cansaço, antes um companheiro familiar, agora era um peso esmagador. Seus dedos, antes ágeis ao folhear um livro, tremiam ao segurar a bandeja.
Certo dia, a professora Helena, uma mulher de olhar perspicaz e sorriso acolhedor, a chamou após a aula. “Mariana, percebo um cansaço incomum em você. Algo lhe aflige?” A honestidade, uma raridade em seu dia a dia, escapou dos lábios de Mariana. Ela contou sobre a bolsa, sobre Lucas, sobre a sensação de impotência. A professora ouviu atentamente, seus olhos fixos nos de Mariana, transmitindo uma empatia silenciosa.
“Às vezes, Mariana,” disse a professora Helena, com a voz suave, “a burocracia tem mais sombras do que luz. Mas a sua luta não é em vão. A perseverança é uma força que nenhuma bolsa pode comprar ou tirar.”
Mariana saiu da sala da professora com uma mistura de alívio e inquietação. A fala de Helena não mudava os fatos, mas acendia uma pequena brasa de esperança em meio ao desalento. Ela olhou para a rua movimentada, para o fluxo contínuo de pessoas em suas rotinas, cada uma com suas batalhas silenciosas. A injustiça era palpável, mas a sua força, aquela que a impulsionava dia após dia, também era.
Naquela noite, enquanto o barulho da rua diminuía e a cidade adormecia, Mariana abriu o notebook. As planilhas de gastos, os rascunhos de trabalhos, tudo estava ali. Mas pela primeira vez em semanas, em vez de se afogar na desesperança, ela sentiu um novo impulso. Não era mais apenas sobre pagar os estudos. Era sobre honrar cada gota de suor, cada sacrifício. Ela não tinha a bolsa integral, mas tinha a sua própria força, uma bolsa de resiliência que, ao que parecia, era mais valiosa do que qualquer edital poderia conferir. E no fundo de seu peito, uma pergunta persistia, silenciosa mas incômoda: quantas outras Marias estavam sendo silenciadas por essas mesmas sombras?
Por: Catarina de Assis Mendonça

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