O Brilho por Trás do Mármore

O Brilho por Trás do Mármore

O cheiro de cera polidora e café requentado era o perfume do turno da Maria. Quinze anos naquela mesma torre de vidro e aço, o Edifício Aurora, um colosso reluzente no coração da cidade. Maria, com seus cabelos grisalhos presos num coque firme e o uniforme azul desbotado, conhecia cada tábua solta do piso, cada rachadura discreta na parede, cada sussurro abafado nos corredores nobres. O mármore dos lobbies, imaculado sob o seu esfregão, escondia mais do que ela imaginava.

Seu ritual era pontual. Quatro da manhã, o sol ainda hesitando em despontar, e Maria já estava a postos. O silêncio da madrugada era seu cúmplice, permitindo que ela ouvisse o zumbido dos computadores desligados, o barulho distante de um elevador subindo. Hoje, no entanto, um barulho incomum a fez pausar. Um murmúrio de vozes, baixo, mas urgente, vinha de uma das salas mais luxuosas do décimo andar, a da Construtora Zenith, a inquilina principal. Maria, acostumada a não ser vista, a se mover como um fantasma, se aproximou da porta de vidro fosco.

Dois homens, engravatados e tensos, conversavam em voz baixa. Maria não conseguia entender tudo, as palavras se misturavam ao barulho distante do trânsito que começava a ganhar vida lá embaixo. Mas ouviu termos como “desvio”, “contrato fantasma” e “sem rastro”. Um deles, mais jovem, com um relógio que parecia um pequeno sol no pulso, jogava papéis sobre a mesa. O outro, mais velho, de face marcada, parecia exasperado. Maria sentiu um arrepio. Ela via o movimento do luxo naquele prédio, os ternos caros, os carros importados estacionados na garagem, os perfumes caríssimos exalados pelas mulheres elegantes. Mas jamais imaginara que aquele brilho pudesse ser construído sobre fundações tão sujas.

Naquela noite, em seu pequeno apartamento no bairro operário, o cheiro de fritura pairando no ar, Maria se debruçou sobre os restos de seu jantar. Pensou em seu filho, no tratamento que ele precisava, nas contas que nunca paravam de chegar. O que fazer com aquela informação? Denunciar? Para quem? O zelador não tinha voz naquele mundo de grifes e escritórios imponentes. Sentiu um peso no peito, uma náusea que não vinha da comida.

Nos dias seguintes, Maria começou a prestar mais atenção. A sua vassoura, antes apenas uma ferramenta de trabalho, tornou-se uma escuta atenta. O lixo, antes um amontoado de descartes, passou a ser um arquivo secreto. Encontrou notas de rodapé em documentos rasgados, recibos de despesas exorbitantes, um pequeno caderno de anotações com códigos que não fazia sentido para ela. A cada fragmento, a trama se tornava mais densa, mais sinistra.

Certa tarde, enquanto limpava a área da copa executiva da Zenith, encontrou, jogado no cesto de lixo reciclável, um envelope grosso. Por impulso, guardou-o na bolsa. Em casa, sob a luz fraca da sua luminária de cabeceira, abriu-o. Eram extratos bancários. Contas offshore, depósitos milionários, datas que batiam com os prazos de grandes obras públicas da prefeitura. Aquele dinheiro, ela sabia, não vinha do trabalho honesto de projetar prédios. Vinha do suor de outros, da esperança de quem dependia de serviços públicos, da saúde, da educação.

Maria sentiu o mundo girar. O conforto da sua invisibilidade se desfez, dando lugar a um medo gélido e a uma raiva que a consumia. Aquela torre de mármore e vidro, que ela ajudava a manter brilhante, era um palco para crimes que afetavam a vida de milhares, inclusive a sua. Olhou para o envelope, para os números impressos que falavam uma linguagem cruel. O que um pedaço de papel podia fazer contra aqueles homens de relógio caro? Mas a imagem do seu filho, da necessidade dele, pulsava em sua mente.

Na manhã seguinte, Maria não seguiu o seu trajeto habitual. Em vez de ir para o Edifício Aurora, pegou um ônibus lotado, sentindo o calor das outras pessoas raspando em sua pele. Seguiu para o centro, para um prédio antigo, com um portão de ferro forjado e uma placa discreta: “Comissão de Ética e Transparência”. Parou em frente, o peso do envelope na bolsa parecendo aumentar a cada segundo. Respirou fundo, o cheiro de poluição misturando-se ao seu receio. Seus passos eram lentos, mas firmes. O brilho por trás do mármore tinha se revelado, e ela não podia mais fingir que não o via. O que viria depois, apenas o tempo diria. E o peso da sua decisão.


Por: Isabela Fernandes Couto

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