A Tinta que Sangra
O cheiro de terebintina e óleo de linhaça era o perfume de Clara, um aroma pungente que pairava sobre seu pequeno ateliê na Vila Madalena. O sol da tarde paulistana, um borrão laranja através da janela suja, pintava os traços fortes e expressivos de seus retratos. Em um canto, um homem com o rosto marcado pela fome e pela descrença olhava fixamente para um futuro incerto. Ao lado, uma mulher com as mãos calejadas de tanto labor, os olhos turvos de exaustão, mas com uma centelha teimosa de esperança. Clara os pintava não como vítimas, mas como lutadores silenciosos, a dignidade resiliente esculpida em cada pincelada.
Ela se dedicava a isso desde que viu a crueldade se instalar nos olhos de seu pai, um operário que viu seus direitos serem esmagados sob o peso de promessas vazias. A arte de Clara não era decora, era um grito. Um grito em cores, um grito em texturas ásperas, um grito que incomodava.
O burburinho começou sutilmente. Comentários em redes sociais, artigos anônimos questionando a veracidade de suas obras, a qualidade de sua técnica. Depois, as ameaças veladas. Ligações com vozes distorcidas, um carro escuro estacionado por horas na rua de sua casa. O medo, antes um sussurro gelado, começou a se alojar em seu estômago, um nó persistente.
João, seu parceiro de anos, um jornalista investigativo com os mesmos ideais flamejantes, a pressionava. “Precisamos sair daqui, Clara. Isso está ficando perigoso demais.” Ele sabia o que era ser alvo. Lembrava-se dos dias em que seu nome era estampado em manchetes hostis, dos olhares de desconfiança dos amigos.
Clara olhava para seus quadros. Para Dona Lúcia, que vendia flores na esquina com um sorriso que parecia desafiar a miséria. Para Zeca, o menino que limpava os vidros dos carros no semáforo, cujos olhos transmitiam uma sabedoria precoce demais. Como poderia abandoná-los? Eles eram a força motriz, a verdade que ela se recusava a silenciar.
Uma noite, o som de um vidro estilhaçando a fez pular da cama. O ateliê estava revirado. Telas rasgadas, latas de tinta derramadas, um rastro de destruição que parecia querer apagar sua voz. A fúria a inundou, seguida por um desespero profundo. O que eles queriam? Que ela parasse de ver? Que parasse de sentir?
Ela sabia que não podia mais continuar ali, exposta, vulnerável. Mas o que fazer com toda aquela tinta, com todas aquelas histórias que clamavam por serem contadas? A decisão pesava em seus ombros, uma escolha entre a autopreservação e a fidelidade a seus princípios.
Na madrugada cinzenta, sob o olhar vigilante de João, Clara empacotou o essencial. O cavalete portátil, seus pincéis mais queridos, e duas telas em branco. O cheiro de terebintina, agora misturado ao odor acre do medo, a acompanhava. Deixou para trás as obras inacabadas, os rostos que a inspiravam, sabendo que, de alguma forma, a história deles continuaria a ser escrita, com ou sem sua mão.
A última imagem que guardou do seu bairro foi a silhueta escura de um prédio alto, onde luzes se acendiam e se apagavam em um ritmo inconstante, como um coração irregular, guardando segredos que a cidade insistia em manter escondidos. Onde iriam? Que novas injustiças encontrariam? E, mais importante, como a tinta, agora espalhada e misturada à dor, encontraria o caminho de volta à tela para gritar novamente? A estrada à frente era longa e incerta, mas a urgência de pintar, de revelar, queimava em seu peito, mais forte que qualquer medo.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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