O Vento nas Bordas
O cheiro de linho cru e a maresia traziam o balanço familiar das manhãs em que Clara se debruçava sobre o tear. Em seu pequeno ateliê, encravado na rua de paralelepípedos irregulares de um bairro costeiro do Nordeste, cada fio era um suspiro, cada ponto, uma memória. Ela bordava o mar. Não o mar das propagandas, idílico e sem fim. O dela tinha a força bruta das marés que engoliam a areia, o lamento das gaivotas acuadas pelo vento, a solidão dos barcos ancorados à espera de um sol que demorava a nascer.
Sua obra-prima era uma tapeçaria que ela batizara de “Maré Baixa”. Meses de trabalho se desdobraram ali: tons de cinza e azul profundo para a água recuada, o ocre das pedras expostas, a delicadeza quase dolorosa dos pés descalços de pescadores marcando a terra úmida. Havia uma melancolia crua na peça, uma verdade que tocava fundo na alma de quem a via. Um galerista paulistano, em uma rara visita à região, se encantou, prometendo uma exposição que mudaria sua vida. Clara, com a simplicidade de quem vive entre o mar e a terra, acreditou.
Foi num portal de arte online, exibindo as novidades de galerias renomadas, que o golpe a atingiu. Uma foto. A mesma tapeçaria. Mas não a dela. Uma versão ligeiramente diferente, com cores mais vibrantes, um sol mais brilhante e um título genérico: “Encantos Marinhos”. A assinatura era de um tal “Ricardo Vianna”, um nome desconhecido para ela, mas que já ganhava manchetes e elogios virtuosos. O galerista, contatado às pressas, respondeu com evasivas, falando de “inspirações” e “interpretações contemporâneas”. Clara sentiu o peso do mundo nas bordas de seus dedos calejados.
A revolta inicial se transformou em um torpor amargo. Passou dias sentada à beira da praia, o sal no ar parecendo corroer sua própria pele. Via os pescadores desdobrando suas redes, remendando-as com a paciência de quem sabe que a vida se reconstrói fio a fio. Via as ondas, constantes, incessantes, nunca as mesmas, mas sempre o mar.
Foi ali, sob o céu que mudava de humor com a mesma frequência que ela mudava os fios de sua tapeçaria, que a centelha voltou. Não era sobre o impostor. Era sobre o mar. Era sobre sua verdade.
Começou um novo projeto, sem pressa, sem o peso da obrigação ou da expectativa alheia. Era uma tapeçaria para si mesma. A “Maré Alta”. Nela, o azul voltava a ser profundo, mas agora com a fúria do oceano revolto, os tons de esmeralda e turquesa pulsando com a força vital. A areia era dourada, quente, não mais o palco de despedidas, mas de recomeços. As gaivotas não eram mais lamentos, mas gritos de liberdade, cortando o céu com a mesma ousadia que ela, agora, sentia em seu peito.
A técnica se aprimorou. Ela descobriu novas texturas nos algodões orgânicos, explorou técnicas ancestrais de tingimento com plantas da região, aprimorou o entrelaçar dos fios para capturar a luz de maneira inédita. Cada falha, cada momento de dúvida, era absorvido pela trama, tornando a obra ainda mais rica, mais complexa. Era um diálogo silencioso entre ela e sua arte, um processo de cura em cada centímetro tecido.
A notícia sobre a exposição de Ricardo Vianna chegou aos ouvidos dela, como uma onda distante. Ele estava expondo em uma galeria de prestígio, a mesma que o galerista havia mencionado. Clara não foi. A ideia de confrontar o impostor, de ver sua verdade roubada emoldurada e exibida como original, era insuportável.
Um dia, um grupo de estudantes de arte de uma universidade distante, que pesquisava técnicas têxteis tradicionais, a procurou. Tinham ouvido falar de uma artesã em particular, conhecida por sua conexão profunda com a matéria e o local. Ao serem apresentados à “Maré Alta”, um silêncio respeitoso tomou conta da sala. Um dos alunos, com os olhos marejados, murmurou: “Isso… isso não é só arte. É alma.”
A “Maré Alta” não ganhou manchetes. Não foi vendida para colecionadores internacionais. Mas ela ressoou. De forma silenciosa, profunda. Em cada ponto, em cada textura, Clara sentia o mar pulsando. E sabia que, mesmo que o vento levasse as histórias, a matéria, a verdade, permanecia. O impostor podia ter copiado a forma, mas a essência, a alma tecida por mãos que conhecem o sal e a dor, essa pertencia apenas a ela. O tear continuava a balançar, o cheiro de linho e mar envolvia o ateliê, e Clara, com um sorriso sereno nos lábios, preparava o próximo fio. O mar era vasto, e suas marés, sempre voltariam.
Por: Ricardo Soares Guedes

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