A Sombra do Último Vagão
O cheiro de mofo e a fritura de pastel da barraca da Dona Maria se misturavam no ar denso da estação. O barulho da linha 1, sempre pulsando, ressoava nas paredes descascadas do túnel. Joana, com seu casaco de lã puído e a bolsa surrada pendurada no ombro, apressava o passo. O último vagão a deixava sempre com um fio de ansiedade, um pressentimento borrando a borda do seu dia.
Ela era mais uma da multidão anônima que se espremia naquele deserto de concreto. A vida em São Paulo se resumia a essa correria, a essa busca incessante por algo que, no fundo, ela nem sabia mais definir. O túnel, com sua iluminação fraca e constante zumbido, era o limiar entre o caos da superfície e a promessa, sempre ilusória, de um descanso.
Naquela noite, porém, o túnel parecia diferente. Uma bruma fria, que não vinha da ventilação, rastejava pelo chão. O som familiar do metrô se distorceu, ganhando um eco fantasmal. Joana acelerou o passo, os saltos batendo ritmicamente no piso úmido. Um vulto passageiro na periferia de sua visão a fez parar. Nada. Apenas as sombras dançando na penumbra.
Um homem, um senhor de chapéu amassado e olhar perdido, tropeçou perto dela. Ele murmurava palavras ininteligíveis, um lamento contínuo. Joana, a princípio, pensou em ignorá-lo, a pressa a sufocando. Mas algo no desespero daquele homem a tocou. “O senhor está bem?”, perguntou, a voz um pouco mais alta do que pretendia.
Ele a olhou com olhos fundos, como se a enxergasse além do seu casaco, além do cansaço estampado em seu rosto. “Eles não me deixam sair daqui”, disse ele, a voz rouca como papel de lixa. “Os corredores… eles se fecham. E as vozes…”
Joana sentiu um arrepio percorrer a espinha. O túnel, de repente, pareceu ganhar vida própria. As sombras se alongaram, se contorceram. Um murmúrio baixo, como um coro de sussurros indistintos, começou a emergir das profundezas. Parecia vir de todas as direções e de lugar nenhum ao mesmo tempo.
O senhor estendeu uma mão trêmula, apontando para um corredor lateral, onde a iluminação falhava intermitentemente. “Por ali… é um labirinto. Um lugar que se alimenta do medo.”
O instinto de Joana gritava para correr, para voltar para o aglomero de pessoas, para a normalidade. Mas uma curiosidade mórbida, talvez instigada pelo desespero do homem, a prendeu ali. Ela se aproximou do corredor, o ar ficando mais gélido, com um cheiro metálico e úmido, como terra revolvida e ferrugem antiga.
As vozes se intensificaram, agora soando como lamentos de pessoas perdidas, ecos de desespero há muito tempo silenciado. Um nome foi pronunciado, um nome que Joana reconheceu de uma notícia antiga, de uma pessoa desaparecida na cidade anos atrás. Seu coração disparou.
O senhor de chapéu a olhava com uma compaixão sombria. “Você também sente, não é? A fome deles.”
Joana não sabia o que responder. Aquele túnel, antes um mero trajeto para casa, transformara-se em um portal. Um portal para um submundo onde as histórias não contadas da cidade, os medos e os arrependimentos, pareciam se materializar. Ela sentiu um peso invisível sobre si, uma presença que a puxava para a escuridão.
A imagem de sua filha, dormindo em casa, veio à sua mente. A necessidade de protegê-la, de voltar para ela, acendeu uma faísca de coragem em meio ao pavor. Ela deu um passo para trás, o corpo tenso.
“Eu preciso ir”, disse, a voz firme, embora trêmula.
O senhor de chapéu sorriu, um sorriso que não alcançava seus olhos. “Todos dizem isso. Mas a porta se fecha. E a fome aumenta.”
Uma luz forte, o farol do próximo trem, rasgou a escuridão do túnel principal. O som ensurdecedor do metal contra trilhos a impulsionou. Ela não olhou para trás. Correu, o coração batendo descompassado contra as costelas, as vozes se distanciando, mas não sumindo completamente.
Ao entrar no vagão abarrotado, o cheiro familiar de gente e suor a envolveu, um alívio quase sufocante. Mas, enquanto o trem se movia rumo à estação seguinte, Joana não conseguia se livrar da sensação de ter deixado algo para trás. Ou, pior, de ter trazido algo com ela. O túnel e seu labirinto subterrâneo agora eram uma sombra permanente em sua mente, um sussurro constante que a faria, para sempre, olhar para o último vagão com um medo diferente. E questionar qual corredor, em sua própria vida, poderia se fechar a qualquer momento, engolindo-a na escuridão.
Por: Marina Rocha Antunes

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