Uma ilha que aparece e desaparece do mapa, com seus segredos obscuros.
O Fio Invisível de Matusalém
O cheiro de maresia misturado ao de terra molhada era o perfume de sempre em São Barnabé. Dona Clarice, com seus sessenta e tantos anos e a pele curtida pelo sol, passava a vassoura com a mesma cadência de sempre na varanda da venda. O dia prometia ser mais um daqueles mornos e lentos, onde a única novidade seria o peixe fresco trazido pelo Zé do Barco ao entardecer. Mas São Barnabé, terra de gente calejada e de histórias sussurradas, guardava um segredo que a brisa já trazia em murmúrios.
Era o dia de Iemanjá. As canoas coloridas, enfeitadas com flores brancas e fitas, já aguardavam o momento de serem lançadas ao mar. Lucas, de vinte e poucos, com os olhos da cor do mar em dia de tempestade, ajudava o pai a amarrar as oferendas. Havia uma expectativa no ar, um misto de devoção e apreensão que parecia se intensificar a cada onda que beijava a areia. A Ilha de Matusalém. Ninguém falava diretamente dela, mas todos sentiam sua presença. Uma mancha escura no horizonte que, segundo os antigos, aparecia e desaparecia em ciclos que desafiavam a lógica. Alguns diziam ser um castigo divino, outros, um portal. Mas todos concordavam: ela trazia consigo um silêncio que devorava a vida.
O avô de Lucas, o velho Antero, contava em segredo que Matusalém era um lugar onde o tempo se retorcia. Que quem se aventurava por suas praias de areia negra podia encontrar não só riquezas, mas também versões de si mesmo que jamais existiram. E que, às vezes, o mar simplesmente a engolia, deixando apenas o eco de seus mistérios.
Naquela manhã, porém, o eco era mais forte. A ilha estava lá. Imponente. Mais próxima do que ninguém se lembrava. Um verde denso, que parecia sugar a luz do sol, coroava o relevo irregular. A praia, de um preto polido, cintilava como obsidiana.
Um grupo de turistas, impulsionados pela curiosidade e por histórias da internet, resolveram ousar. Entre eles, a fotógrafa Mariana, com seus cabelos tingidos de azul e um olhar que buscava a beleza no inusitado. Ela sentia que Matusalém era o cenário perfeito para sua próxima exposição. Lucas a observou de longe, um incômodo no peito que ele não sabia nomear. Havia algo em Mariana que o perturbava, uma espécie de fragilidade mascarada por um otimismo desafiador.
Quando o barco pequeno que levava os turistas se aproximou da costa de Matusalém, um véu de neblina estranha se formou, envolvendo a ilha. Os sons de São Barnabé se foram, substituídos por um sussurro grave, como o murmúrio de uma multidão distante. Mariana, com a câmera em punho, sentiu a adrenalina pulsar. Mas quando pisou na areia escura, um arrepio percorreu sua espinha. O cheiro ali era diferente, metálico, com um toque adocicado e perturbador. As árvores tinham formas retorcidas, galhos que pareciam braços buscando o céu.
Lucas, que havia seguido de barco, mas mantendo uma distância segura, viu a neblina se adensar. De repente, o pequeno barco dos turistas desapareceu. Nada. Apenas o mar, a ilha e o silêncio opressor. O pânico tomou conta dos moradores. O velho Antero, pálido como nunca, agarrou o braço de Lucas. “O mar a levou de novo, menino. Mas ela não só levou os estranhos. Levou algo de nós também.”
Nos dias que se seguiram, São Barnabé mergulhou em um luto silencioso. As redes de pesca voltaram vazias. O peixe fresco era uma lembrança distante. E nas casas, as pessoas começaram a relatar visões. Um pescador jurou ter visto sua esposa, falecida há anos, acenando de uma praia escura. Dona Clarice insistia que ouvia a risada de sua filha, perdida no mar na juventude, vindo de lugar nenhum. Lucas, em seus pesadelos, via Mariana com um sorriso que não era o dela, convidando-o para um mergulho em águas negras.
Uma semana depois, a neblina em torno de Matusalém se dissipou. Mas a ilha não estava mais lá. Apenas o azul infinito do oceano, como se Matusalém tivesse sido apenas um sonho, um devaneio coletivo. Mas a verdade era mais cruel. No lugar onde a ilha estivera, um rastro de conchas estranhas, de cores vibrantes e formas nunca vistas, flutuava sobre a água. E em São Barnabé, o silêncio não era mais de tristeza, mas de um vazio que ameaçava devorar as almas. Lucas, olhando para o mar, sentia que algo dele havia ficado em Matusalém, e algo de Matusalém agora residia nele. O fio invisível da ilha havia se esticado, conectando-os para sempre em um mistério que o oceano, em sua infinita crueldade, se recusava a revelar. E no fundo de seu peito, uma pergunta teimava em brotar: o que, de fato, era deixado para trás quando Matusalém resolvia ir embora?
Por: João Pedro Silveira

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