Um jardim onde as plantas crescem de forma anormal e predadora.

Um jardim onde as plantas crescem de forma anormal e predadora.

O Orvalho Ácido

O cheiro de terra molhada, misturado ao adocicado enjoativo de alguma flor desconhecida, sempre foi o aroma dominante na casa da Dona Elvira. Não era um perfume agradável, daqueles que convidam a um suspiro relaxado. Era denso, pegajoso, quase como se o próprio ar tivesse a viscosidade de um xarope. Para Ana Clara, que voltara para cuidar da mãe após anos longe, o cheiro era uma lembrança constante do porquê ela fugira.

O jardim, um dia o orgulho de Dona Elvira, um microcosmo de cores vibrantes e perfumes delicados que competiam com os das vizinhas, agora era outra coisa. Uma aberração. As roseiras, antes com caules esguios e botões rosados, apresentavam espinhos grossos e curvos como garras, enrolando-se em torno de si mesmas em um abraço sufocante. As begônias, que deveriam ostentar folhas aveludadas e manchas exóticas, agora tinham um brilho oleoso, e suas bordas se retorciam para cima, como bocas famintas buscando algo no céu pálido.

Ana Clara evitava entrar no jardim. Para ir à cozinha ou buscar água na torneira externa, ela dava uma volta tortuosa pela lateral da casa, pisando com cuidado na grama rala que parecia relutar em crescer ali. Apenas uma vez, sob o impulso de uma saudade estranha de um tempo que não existia mais, ela se aventurou mais perto. Tocou uma folha de begônia. Era fria, dura, e um resíduo pegajoso, quase como seiva, ficou em seus dedos. Ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha, não de medo, mas de uma repulsa visceral, um instinto de preservação que ela achava ter enterrado sob anos de distância.

Dona Elvira, cada vez mais reclusa em seu quarto, passava horas observando o jardim pela janela. Seus olhos, antes vivos e curiosos, agora tinham um brilho opaco, fixo em algo que Ana Clara não conseguia ver. “Eles estão tão bonitos hoje, Clara”, dizia ela com uma voz rouca, um fio de orgulho persistente em sua melodia debilitada. Ana Clara concordava com um aceno vago, incapaz de encontrar as palavras para descrever o que realmente via. Não era beleza. Era uma fome silenciosa, uma energia contida, uma promessa de algo que não podia ser nomeado.

Certa manhã, enquanto o sol ainda lutava para dissipar a névoa úmida, Ana Clara ouviu um barulho estranho vindo do jardim. Um arrastar lento, um raspão úmido na terra. O coração disparou. Ela foi até a janela da cozinha, de onde tinha uma visão parcial do pátio. As videiras, que outrora adornavam o muro com cachos generosos, agora se estendiam pelo chão como tentáculos grossos e escuros, suas folhas grossas e carnudas movendo-se lentamente. Uma delas se aproximava de um dos vasos onde antes moravam as petúnias, agora um amontoado seco e retorcido.

Ana Clara se aproximou da janela, os dedos pressionando o vidro gelado. Ela viu a ponta de uma das videiras tocar o vaso. Houve um leve estalo, um som seco e quebradiço, e a videira pareceu se retrair por um instante, como se tivesse provado algo. Então, com uma força inesperada, ela se enrolou em torno do vaso, apertando-o. A terra úmida começou a se espalhar, e as raízes finas e escuras da videira pareceram se infiltrar no solo escasso.

Não era uma planta comum, se é que algum dia fora. Era um ser que se alimentava, que crescia não apenas da luz do sol e da água, mas de algo mais. Algo que Ana Clara sentiu, naquele momento, que pertencia a ela também, uma ameaça sutil e ancestral.

Um dia, enquanto regava o pequeno canteiro de manjericão que ela se esforçava para manter longe do alcance do jardim principal, um dos espinhos da roseira mais próxima se esticou. Não foi um movimento brusco, mas um alongamento deliberado, quase como um braço se erguendo. A ponta do espinho, mais grossa e negra que o resto, pairou no ar por um momento, a poucos centímetros da mão de Ana Clara. Ela paralisou. O ar ficou mais denso, o cheiro de terra e flor adocicada se intensificou, quase sufocante.

Ela não sentiu medo. Sentiu uma familiaridade perturbadora, como se o jardim estivesse apenas respondendo a um chamado antigo dentro dela. Um chamado que ela tentou apagar por tantos anos. Lentamente, Ana Clara retirou a mão, seu corpo tenso. O espinho se retraiu, voltando à sua posição retorcida.

Dona Elvira, mais fraca a cada dia, pediu: “Clara, traga-me uma rosa. Aquela vermelha, a mais perto da cerca.”

Ana Clara hesitou. A roseira em questão era a pior delas, seus ramos enroscados em uma teia sombria, e o perfume que emanava dela era o mais forte, o mais enjoativo. Mas o olhar suplicante da mãe não podia ser ignorado.

Com as mãos trêmulas, ela pegou a tesoura de poda. Entrou no jardim, o som de suas pisadas abafado pela terra úmida. O cheiro a envolveu, quase como um abraço frio. Ela se aproximou da roseira. Uma única rosa, de um vermelho profundo e sombrio, desabrochava entre os espinhos grossos. Era linda de uma forma sinistra.

Ao tentar cortar o caule, um dos ramos se moveu com uma velocidade surpreendente, envolvendo seu pulso. Os espinhos não a machucaram, mas a prenderam, uma pressão firme e implacável. Ana Clara olhou para a rosa, depois para sua mão presa. Sentiu uma corrente sutil, um sussurro de energia que fluía do jardim para ela, e dela para o jardim. Uma troca silenciosa.

Ela não gritou. Apenas olhou para a rosa, para a sua própria mão, e uma compreensão fria a invadiu. As plantas não estavam apenas crescendo de forma anormal. Elas estavam famintas por algo mais profundo do que apenas sol e água. E talvez, apenas talvez, elas tivessem encontrado algo em Dona Elvira, e agora, em Ana Clara.

Ela se soltou com um puxão deliberado, sentindo um leve arranhão, uma picada sutil na pele. Deixou a tesoura cair. A rosa permaneceu em seu lugar, uma promessa sombria. Ela voltou para dentro, o cheiro do jardim ainda grudado em sua pele. Dona Elvira a esperava, os olhos brilhando com uma expectativa que Ana Clara não conseguia decifrar.

A porta do quarto da mãe se fechou. O jardim continuou seu sussurro silencioso, sua fome insaciável, esperando a próxima aurora. E Ana Clara, sentada à beira da cama de sua mãe, sentia um leve formigamento em sua mão, um eco da prisão que acabara de experienciar. Era apenas o começo.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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