O Vento que Trazia Palha e Segredos
O cheiro pungente de serragem úmida e suor animal era o perfume do Circo Miragem, um aroma familiar que grudava nas roupas, na pele e na memória dos que ousavam se aproximar de suas lonas desbotadas. Eram poucos os que paravam, num Brasil engolido pela pressa dos asfalto, onde o espetáculo real acontecia nas telas cintilantes das cidades. Mas ali, no descampado poeirento de uma cidadezinha esquecida do interior de Minas, a Miragem teimava em fincar raízes por algumas noites, um sopro de cor e fantasia num mundo cada vez mais monocromático.
Don Manuel, o mestre de cerimônias com o bigode tingido de um roxo desbotado e um sorriso que parecia colado, era o guardião dos segredos. Seus olhos, turvos como um riacho lamacento, já tinham visto de tudo, desde a glória efêmera de um picadeiro lotado até o silêncio cruel de noites sem público. Mas o que ninguém sabia era que o bigode roxo não era apenas vaidade. Era um disfarce, uma fina camada de tinta a esconder as marcas de queimaduras profundas que lhe desfiguravam parte do rosto, lembrança de um fogo que um dia quase consumiu tudo, inclusive a ele. Ele carregava, em cada dobra do seu terno brilhante, a cicatriz de uma escolha imposta.
A trapecista, Luísa, era a deusa do ar. Seus saltos eram milagres de gravidade suspensa, sua lycra vermelha um lampejo contra o teto escuro do circo. Ela dançava no céu, leve, etérea, arrancando suspiros e aplausos tímidos. Mas quando descia, seus ombros caíam um pouco mais, o olhar se perdia na multidão escassa, e o peso do mundo se manifestava em suas mãos trêmulas. Luísa fugia. Fugia de um casamento arranjado, de um destino que lhe era imposto na sua cidade natal, e o circo, com sua rotina nómade, era o único refúgio que lhe permitia respirar, mesmo que por um curto espaço de tempo. Cada voo era uma oração silenciosa por liberdade.
E havia o palhaço, o Gugu. Seu rosto pintado de branco, com a lágrima vermelha e um sorriso que parecia chorar, era a personificação da melancolia. Ele fazia as crianças rirem, os adultos esquecerem suas preocupações por um instante. Mas por trás da máscara, Gugu era um homem de poucas palavras, um ex-professor de física que, após uma tragédia pessoal, decidiu trocar as equações complexas pelas piadas simples, o laboratório silencioso pelo burburinho efêmero de um circo. Ele buscava, em cada riso alheio, uma forma de apagar o eco do silêncio que o assombrava. Sua maior habilidade não era a acrobacia, mas a arte de transformar a dor em diversão.
Naquela noite, a chuva fina caía lá fora, batendo nas lonas como um tambor rítmico. O público era pequeno, um punhado de famílias com rostos cansados e olhos curiosos. Don Manuel, em seu palco, sentia o peso de cada olhar, a esperança de que o show fosse bom o suficiente para que eles voltassem. Luísa, em seu camarim improvisado, apertava um pequeno crucifixo de madeira, sentindo o suor frio escorrer em suas costas. Gugu, no corredor escuro, olhava seu reflexo num espelho rachado, e a lágrima vermelha parecia mais intensa do que o usual.
No ápice do espetáculo, quando Luísa realizou um salto mortal duplo que fez a plateia prender a respiração, um homem, sentado na primeira fila, levantou-se abruptamente. Seu rosto era familiar, duro, marcado pelo tempo e pela autoridade. Os olhos de Don Manuel se fixaram nele, o coração disparado como um galope descontrolado. O homem não gritou, não apontou. Apenas olhou para Luísa com uma intensidade que perfurava a distância e a ilusão.
Luísa, no ar, sentiu o olhar. Por um instante, o voo vacilou. O vermelho da sua lycra pareceu apagar. O homem era o pai dela.
No camarim, enquanto Luísa se trocava com mãos ainda trêmulas, um dos ajudantes do circo, um jovem magro chamado Zé, que nunca falava muito, mas observava tudo, parou na porta. Ele sabia. Sabia dos olhares de Don Manuel para o homem na plateia, sabia da angústia de Luísa. Zé carregava seu próprio fardo, um passado de pequenos furtos que o levaram a buscar um refúgio nos caminhos tortuosos do circo. Ele viu um brilho diferente no olho de Don Manuel, um brilho que não era de esperança, mas de um medo antigo.
Quando o show terminou, com os aplausos dispersos e o cheiro de terra molhada tomando conta do ambiente, o homem da primeira fila não esperou. Simplesmente desapareceu na escuridão. Luísa, a deusa do ar, desceu do picadeiro com os joelhos cedendo.
Don Manuel, em seu quarto modesto, tirou o bigode roxo. O rosto em decomposição sob a tinta era um mapa de desgraças. Ele olhou para o reflexo na água fria de uma bacia. Lembrou-se do fogo, do som de gritos, da escolha cruel. Aquele homem na plateia… era a chave.
Na manhã seguinte, quando o sol ainda relutava em romper as nuvens pesadas, o Circo Miragem começou a se desmontar. A lona desbotada foi empacotada, os animais foram recolhidos. Mas algo ficou para trás. Um bilhete, cuidadosamente dobrado, deixado no banco de Luísa. E um sussurro, carregado pelo vento que trazia mais palha do que segredos, sobre um homem que havia se afastado para sempre, levando consigo um pedaço do brilho, mas deixando a promessa de que, talvez, a verdadeira mágica não estivesse no espetáculo, mas nas vidas que se cruzavam sob a lona, cada uma com seu próprio palco, seu próprio dilema, sua própria busca por um lugar sob o sol.
Por: João Pedro Silveira

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