Um escritor que usa experiências reais de medo para sua ficção, mas as linhas se apagam.

Um escritor que usa experiências reais de medo para sua ficção, mas as linhas se apagam.

O cheiro de café requentado e mofo pairava no pequeno apartamento no Centro de Curitiba. As cortinas grossas, permanentemente fechadas, bloqueavam o sol pálido de outono, mergulhando o quarto de Gabriel numa penumbra perpétua. Na mesa abarrotada de livros, rascunhos e embalagens de salgadinho, um laptop exibia uma página em branco que parecia rir dele.

Gabriel era um escritor. Não um desses que desfilam em cafés chiques e se vangloriam de inspiração divina. Gabriel era um artesão do terror, um alquimista do pânico. Ele destilava seus medos mais profundos em contos que faziam os leitores suarem frio, que os faziam olhar por cima do ombro no escuro. O problema era que, ultimamente, as linhas entre o que ele escrevia e o que ele vivia estavam se tornando perigosamente tênues.

Tudo começou com “O Sussurro na Lapa”. A história de um antigo casarão abandonado no bairro histórico, onde sombras dançavam e vozes inaudíveis pareciam sussurrar promessas sombrias. Gabriel passou semanas pesquisando a Lapa, caminhando por suas ruas de paralelepípedos sob a chuva fina, sentindo o peso da história em cada esquina. Ele amplificou o som do vento entre as telhas quebradas, a ranger de uma madeira velha, a sensação de ser observado. Ele sentiu, ele *soube*, a opressão daquele lugar. E o conto foi um sucesso estrondoso.

Depois veio “O Encontro na Rua XV”. Um relato sobre um estranho que segue o protagonista por longas avenidas, sua presença uma ameaça silenciosa e constante. Gabriel transformou a famosa Rua XV de Novembro, com seu movimento incessante, em um palco de paranoia. Cada vulto na periferia de sua visão, cada passo ecoando atrás do seu, tornava-se um elemento da história. Ele acordava suando frio, com o coração martelando contra as costelas, convencido de que alguém estava do lado de fora de sua porta.

Agora, ele estava em “A Casa dos Olhos de Vidro”. A inspiração veio de um prédio antigo na Rua 13 de Maio, com janelas grandes e escuras que pareciam pupilas fixas. Ele imaginava a história de um colecionador recluso que usava objetos observados por seus donos para alimentar uma coleira sinistra. Ele passava horas sentado em seu carro, a poucos metros do prédio, observando as luzes que piscavam e se apagavam, imaginando quem – ou o quê – habitava lá dentro.

Foi na noite de quinta-feira, enquanto escrevia a cena crucial onde o protagonista, Alex, descobre que os olhos de vidro na coleção do colecionador não eram meras decorações, mas os próprios olhos de suas vítimas, que algo mudou. Um barulho na cozinha. Um arranhar sutil, quase imperceptível. Gabriel congelou, o dedo pairando sobre o teclado. Ele ignorou. Era o gato da vizinha, com certeza. Ou o vento batendo em alguma lata no beco.

Mas o arranhar persistiu. Mais insistente. Parecia vir de dentro de seu próprio apartamento. Do armário da cozinha. Gabriel levantou-se devagar, as pernas bambas. A luz fraca do abajur jogava sombras longas e distorcidas pelo corredor. Ele sabia que era bobagem. Alex estava seguro atrás da tela do computador, preso em outra dimensão. Mas a sensação de ser observado, que ele tão habilmente construía para seus leitores, agora o envolvia.

Ele abriu a porta do armário com a mão trêmula. A escuridão lá dentro parecia mais densa, mais opressora do que o normal. Um cheiro metálico, fraco, mas inconfundível, pairava no ar. Ele acendeu a lanterna do celular, o feixe de luz dançando sobre prateleiras vazias, potes de conserva empoeirados. Nada.

Um suspiro escapou de seus lábios, um misto de alívio e frustração. Ele estava sendo idiota.

Ao se virar para fechar a porta, viu. No canto mais escuro do armário, entre as sombras, algo se moveu. Um brilho sutil, como o reflexo de luz em um olho. Um olho de vidro. Era pequeno, no início, mas parecia crescer, fixando-se nele.

Gabriel soltou um grito abafado e recuou, batendo as costas na parede. O laptop caiu no chão com um baque surdo. A página em branco parecia agora uma tela negra, preenchida com a imagem que se materializava em sua mente.

Ele correu para a janela, ignorando o café requentado, o mofo, a penumbra. Empurrou as cortinas grossas com um puxão desesperado. O sol já havia se posto há muito tempo. A rua 13 de Maio estava banhada pela luz alaranjada dos postes. E lá estava ele. O prédio dos olhos de vidro. E, em uma das janelas mais altas, ele jurou ter visto um par de olhos fixos, observando-o.

Ele passou o resto da noite encolhido no sofá, a lanterna do celular acesa, incapaz de fechar os olhos. A cada ruído, a cada sombra, a sua imaginação, antes seu fiel instrumento, agora se tornava sua maior torturadora. As linhas haviam se apagado completamente. Ele não sabia mais onde terminava a ficção e onde começava a realidade. E a pior parte era o silêncio. Um silêncio que soava como um sussurro inaudível, prometendo mais. Muito mais.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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