Um arqueólogo que descobre uma tumba que contém um mal adormecido.

Um arqueólogo que descobre uma tumba que contém um mal adormecido.

A Poeira do Silêncio

O sol a pino castigava a terra rachada de Minas Gerais, fazendo o ar tremer sobre as pedras antigas. Elias, com seus quarenta e poucos anos, a barba cerrada salpicada de sal e suor, sentia o peso da enxada nas mãos calejadas. O suor escorria pelas têmporas, misturando-se à poeira avermelhada que se agarrava à sua pele. Não era a primeira vez que se aventurava em busca de vestígios do passado, mas algo naquele sítio, nas franjas de um pequeno vilarejo esquecido pelo tempo, o chamava com uma insistência peculiar.

Diferente de outros colegas, Elias não buscava a fama nem a glória de museus renomados. Seu amor pela arqueologia era um sussurro íntimo, uma forma de dialogar com as vozes silenciadas pela história. Cresceu ouvindo as histórias de sua avó, dona Joana, sobre tesouros escondidos e lendas que a terra guardava. Ela, com seus olhos que pareciam ter visto séculos, dizia que cada pedra, cada fragmento de cerâmica, contava uma história. Elias carregava essas palavras como um amuleto.

Naquele dia, a enxada bateu em algo oco, um som diferente, ressonante. O coração disparou. Aos poucos, com cuidado, ele removeu a terra, revelando uma laje de pedra peculiar, diferente das que encontrava por ali. A superfície, desgastada pelo tempo, apresentava entalhes rústicos, símbolos que ele não reconhecia de imediato, mas que o arrepiaram. Havia uma sensação palpável de antiguidade, uma quietude profunda que parecia pressionar os ouvidos.

A equipe, composta por dois jovens estudantes da universidade federal, Lucas e Sofia, se aproximou com curiosidade. Lucas, sempre impaciente, já tentava forçar a laje. Sofia, mais cautelosa, observava com uma expressão de admiração e apreensão. “Elias, isso não é como as outras coisas que achamos. Parece… intocado.”

Com o tempo e o uso de ferramentas mais adequadas, a laje cedeu, revelando uma abertura escura. Um ar frio e denso emanou de seu interior, um cheiro mofado e terroso, misturado a algo indefinível, uma doçura podre que fez Elias sentir um leve enjoo. Ele acendeu a lanterna, o feixe de luz cortando a escuridão e revelando uma câmara pequena, paredes de pedra bruta e um sarcófago central, maciço e sem adornos ostensivos.

Dentro do sarcófago, repousava uma figura, envolta em tecidos desintegrados. O que chamou a atenção de Elias não foi a mumificação, mas sim a aura que emanava. Não era um silêncio de repouso, mas um silêncio vibrante, contido. Ao se aproximar, ele sentiu uma leve vertigem, como se o próprio ar na câmara estivesse se tornando mais denso. As mãos tremiam levemente enquanto ele retirava um pequeno objeto de metal, escurecido pelo tempo, do peito da figura. Era um amuleto, estranhamente familiar, gravado com os mesmos símbolos da laje exterior.

Naquela noite, de volta ao modesto alojamento no vilarejo, Elias não conseguia dormir. A imagem da tumba, a sensação opressora do ar, o cheiro estranho, tudo se misturava em sua mente. Ele folheava seus livros, tentando decifrar os símbolos. Nada. Era algo mais antigo, mais primal. Sentiu um leve ardor no dedo onde segurava o amuleto, um formigamento persistente.

Nos dias seguintes, uma estranha melancolia tomou conta do vilarejo. As pessoas, geralmente alegres e comunicativas, pareciam mais retraídas, o olhar perdido. Uma febre baixa e persistente começou a se espalhar, atingindo principalmente as crianças. O médico local, um senhor de semblante cansado, não encontrava explicação.

Elias observava tudo com um nó na garganta. A poeira vermelha parecia ter ganhado uma vida própria, pairando no ar com mais intensidade. Uma noite, enquanto olhava para a lua cheia, sentiu uma voz em sua mente, um sussurro antigo e frio. Não eram palavras, mas uma sensação, um desejo primordial de ser libertado. Ele levou a mão ao peito, onde sentiu o amuleto, agora quente.

O dilema o corroía. A prudência científica exigia que ele relatasse tudo, que a tumba fosse selada, que a descoberta fosse tratada com a máxima cautela. Mas o amuleto, pulsando em sua mão, parecia sussurrar outra coisa. Uma curiosidade mórbida, um fascínio pelo desconhecido, a tentação de desvendar o que jazia adormecido. Ele se lembrava das histórias de sua avó, de como o equilíbrio era delicado, de como o passado podia ferir o presente.

Sofia o procurou, preocupada. “Elias, você não parece bem. E essa febre no vilarejo… e a forma como as pessoas estão.”

Elias olhou para ela, seus olhos marejados. “Sofia, acho que desenterramos algo que não devíamos.”

Ele não contou tudo. Apenas a sensação, o peso da responsabilidade. Na manhã seguinte, com o sol ainda tímido, Elias voltou à tumba. A entrada parecia mais larga, a escuridão mais convidativa. O amuleto em sua mão ardia com uma intensidade nova. Ele sabia que a escolha que faria naquele momento ecoaria muito além da terra rachada de Minas. As vozes antigas, antes silenciadas, pareciam agora acordar, implorando por algo.

Ele se debruçou sobre o sarcófago, a poeira antiga dançando em volta dele como fantasmas dançantes. Uma decisão pairava no ar, tão palpável quanto o calor do sol da manhã. Selar para sempre, ou… O que o amuleto desejava? O que o mal adormecido buscava? A resposta, Elias sabia, estaria gravada na poeira, no silêncio que se estendia.


Por: Marina Rocha Antunes

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