Poeira e Sussurros na Batalha Esquecida

Poeira e Sussurros na Batalha Esquecida

O cheiro de mofo e ferrugem grudava na garganta de Elias como a poeira fina que pairava no ar. A Base Militar de Santa Maria, ou o que restava dela, era um espectro de concreto e metal retorcido, engolido pela vegetação rasteira da serra gaúcha. Era um lugar onde o eco dos anos de glória militar se misturava ao silêncio opressivo dos dias de esquecimento. Ele estava ali por causa de sussurros, vozes que haviam sumido, pessoas que haviam evaporado como névoa matinal sob o sol.

Seu contato, um ex-guarda territorial chamado Seu João, um homem com a pele curtida pelo tempo e um olhar que havia visto demais, o esperava na porteira enferrujada. O velho, com suas mãos nodosas e tremores leves, entregou-lhe uma chave gasta. “Se cuida, rapaz. Dizem que tem coisa solta por aqui.”

Elias, conhecido em alguns círculos sombrios como “Sombra”, não era homem de se intimidar facilmente. O que o impelia, contudo, não era a bravura ou o senso de dever, mas uma dor pessoal, um eco de desaparecimento que ressoava em sua própria história. Ele sentia a gravidade de cada alma perdida, cada família deixada em prantos.

A base era um labirinto de corredores escuros e pátios abandonados. O sol se espremia por janelas quebradas, projetando padrões fantasmagóricos no chão rachado. O barulho de seus passos parecia profanar a quietude sepulcral. Ele encontrou cartazes desbotados de campanhas de alistamento, fotos de soldados sorridentes em tempos idos, relíquias de uma existência que agora parecia alienígena.

Em um dos prédios administrativos, Elias encontrou uma sala que não estava completamente em ruínas. Uma mesa de metal, um arquivo tombado e, sobre a poeira, um diário encadernado em couro surrado. As anotações eram feitas com uma caligrafia nervosa, o relato de um jovem soldado, Mateus, sobre as últimas semanas antes do abandono da base.

Mateus escrevia sobre o isolamento, a tensão crescente, e algo mais. Ele mencionava “experimentos”, “noites de barulho” e um medo que se instalava nos corações dos homens, um medo que ia além do combate. Havia referências a “desaparecimentos incomuns” dentro da própria base, antes mesmo da ordem de evacuação. Soldados sumiam de seus postos, de seus alojamentos, sem deixar vestígios.

Elias sentiu um arrepio. As histórias de Seu João ganhavam forma, substância sombria. As pessoas que haviam procurado por seus entes queridos, que haviam recebido respostas vagas ou evasivas, tinham razão em suas suspeitas.

Ele continuou a investigar, vasculhando os alojamentos abandonados. Encontrou objetos pessoais deixados para trás às pressas: uma fotografia amassada de uma família, um medalhão com uma inscrição religiosa, um par de botas desgastadas. Cada objeto era um grito mudo de alguém que partiu sem aviso, sem despedida.

Em uma das celas de detenção, ele encontrou algo mais perturbador. Sob uma camada grossa de poeira, um desenho rudimentar de um círculo com símbolos estranhos estava gravado na parede. A marca parecia recente, apesar do abandono da base. E, perto dela, uma pequena boneca de pano, um brinquedo infantil. Elias sentiu um aperto no peito. O que uma criança estaria fazendo ali, num lugar como este? Ou seria um símbolo, um aviso?

A noite caiu sobre Santa Maria como um manto escuro e pesado. Elias acendeu sua lanterna, o feixe dançando nas paredes úmidas. Ele ouviu um som. Um leve arrastar de pés. O coração acelerou. Não era o vento. Não era um animal.

Ele seguiu o som, movendo-se com a cautela de um predador, embora fosse ele o caçado. O som o levou a um antigo bunker subterrâneo, a entrada parcialmente obstruída por escombros. Com esforço, ele abriu uma passagem estreita.

Lá dentro, a escuridão era quase absoluta. O ar era pesado, com um cheiro metálico e adocicado que Elias não conseguia identificar. O feixe de sua lanterna revelou mais desenhos nas paredes, mais símbolos enigmáticos, e um pequeno monte de objetos – brinquedos, fotografias rasgadas, um pedaço de tecido de uniforme. E, no centro, um silêncio que parecia vibrar com uma presença ausente.

Elias se ajoelhou, a lanterna tremendo em sua mão. Ele pegou um pequeno medalhão de prata, desgastado pelo tempo. Na inscrição, um nome: “Sofia”. Ele conhecia esse nome. Uma das crianças desaparecidas, cujas fotos ele havia visto nos jornais, um rosto que ele jurou que nunca esqueceria.

Ele não encontrou respostas definitivas, nem criminosos enjaulados. O que ele encontrou foi a confirmação de que a verdade era muito mais sombria do que as autoridades queriam admitir. A base não era apenas um cemitério de memórias militares, mas um lugar onde histórias e vidas haviam sido engolidas por algo indefinido, algo que deixava apenas ecos e rastros de dor.

Ao sair da base, a madrugada começava a clarear o céu, pintando-o de tons de laranja e rosa. O ar fresco da serra parecia purificador, mas a poeira de Santa Maria havia se impregnado em sua alma. Ele olhou para trás, para a silhueta escura da base contra o horizonte nascente.

A questão permanecia, pairando no ar como a bruma da manhã: o que exatamente aconteceu ali? E, mais importante, o que ainda estava lá, escondido nas sombras, esperando? Elias sabia que não poderia parar. A Sombra precisava continuar, alimentada pela lembrança de Sofia e de todos os outros que haviam desaparecido, deixando para trás apenas o silêncio e a dor. E ele sentia, com uma certeza perturbadora, que o enigma de Santa Maria estava longe de terminar. A busca havia apenas começado.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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