A Última Linha de Código
Rafael sentiu o cheiro do café velho e o zumbido baixo do computador, uma sinfonia familiar de seus dias e noites em São Paulo. A pequena quitinete, com a janela voltada para um emaranhado de fios e antenas, era seu santuário e sua prisão. Programador freelancer, ele vivia do que aparecia: sites institucionais sem graça, aplicativos para pet shops, e, mais recentemente, uns trabalhos obscuros que pagavam bem e o deixavam com uma sensação incômoda no estômago.
Foi em um desses trabalhos que ele encontrou. Um projeto legado, abandonado por anos, que deveria ser apenas uma rotina de manutenção. Mas em meio a centenas de linhas de código arcaico, ele topou com algo… anômalo. Não era um bug, não era um easter egg esquecido. Era uma lógica que desafiava qualquer padrão que ele conhecesse, uma estrutura que parecia respirar com uma inteligência alienígena. A sintaxe era estranha, um misto de símbolos arcanos e um dialeto de programação que ele nunca vira.
Seu nome era “Cerberus”, segundo um comentário críptico. E quanto mais Rafael mergulhava, mais a pele arrepiava. Não era apenas complexo; era perigoso. O código não executava funções, ele manipulava… algo. Algo que se manifestava em ruídos no sistema, em falhas visuais sutis na tela, em uma sensação crescente de que a própria realidade ao redor da sua cadeira de escritório estava se tornando mais densa, mais carregada.
Ele tentou isolá-lo. Tentou entender. Em uma noite chuvosa de quarta-feira, com o som das sirenes distantes cortando o ar úmido, Rafael rodou o script. Não houve explosões, nem fumaça sulfurosa. A tela ficou preta por um instante, e então, em vez do familiar prompt de comando, surgiu um ícone. Uma espiral trêmula, pulsante. A curiosidade, misturada a um medo primitivo que ele não sabia que possuía, o impeliu a clicar.
Um sussurro. Não um som audível, mas um eco na mente, como se alguém estivesse falando diretamente com a parte mais funda de seu cérebro. A espiral expandiu-se, transformando-se em um vórtice de cores que não existiam no espectro visível. Rafael sentiu o chão tremer, não fisicamente, mas em sua alma. A quitinete, antes um espaço seguro, tornou-se um portal. O cheiro de café velho foi substituído por um odor metálico, um cheiro de ferrugem e algo… antigo.
E então, ela apareceu. Não uma figura demoníaca com chifres e tridentes, mas algo pior. Uma sombra. Um vácuo na forma de uma mulher alta, magra, cujos olhos eram poços de escuridão sem fundo. Ela não falava, mas Rafael sentia as palavras na sua mente, frias e implacáveis. Ela não oferecia tentações, mas verdades cruas, verdades que desnudavam as fraquezas mais profundas da humanidade, os medos que ele reprimia há anos.
“Você abriu a porta, criatura de carne e ossos”, a voz mental soou, sem emoção. “E agora ela está aberta. Para sempre.”
Rafael sentiu o pânico borbulhar. Ele era um programador. Não um herói, não um exorcista. Ele só queria entender um código.
“O que você quer?”, ele conseguiu formular, a voz embargada pelo medo.
A sombra inclinou a cabeça, um movimento sutil que fez a luz fraca da lâmpada de seu quarto parecer engolida pela escuridão que a cercava. “O que sempre quisemos. Observar. Cobrar. Entrar.”
A tentação era quase palpável. A promessa de conhecimento, de poder, de entender a mecânica do universo que sempre o intrigou. Mas por trás disso, a desolação, o vazio, a extinção do que ele conhecia como vida.
Ele olhou para a tela, para o código que se desdobrava como uma serpente escura. Havia uma linha, a última, que ele não tinha entendido completamente. Uma linha que parecia ser a chave de fechamento. Mas o que aconteceria se ele a executasse? E se o portal se fechasse para sempre, mas deixasse algo para trás? Ou se ele o abrisse ainda mais?
A sombra esperava, paciente. O sussurro em sua mente aumentou, oferecendo vislumbres do que jazia além da porta, um universo de caos e ordem que ele nunca poderia conceber. Rafael sentiu o peso das escolhas. O conforto de sua ignorância, ou a vertigem do conhecimento proibido.
Com dedos trêmulos, ele moveu o mouse em direção à última linha de código. O cheiro de ferrugem e de algo que ele não conseguia identificar mais forte. O zumbido do computador, antes uma melodia familiar, agora soava como um prenúncio. O que ele faria? Apertaria Enter? Ou tentaria apagar tudo, numa luta desesperada contra uma porta que já havia sido escancarada? A noite em São Paulo continuava, indiferente, apenas mais uma noite cheia de ruídos distantes e luzes que teimavam em quebrar a escuridão.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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