Um colecionador de artefatos antigos que desenterra um objeto amaldiçoado.

Um colecionador de artefatos antigos que desenterra um objeto amaldiçoado.

O Poeira e o Sussurro

A luz fraca do abajur de latão escurecia o rosto de Elias, as linhas finas gravadas pelo sol e pela poeira de tantas escavações. Ele estava em seu pequeno apartamento em Paraty, o cheiro de maresia e madeira velha impregnado nas paredes. Sobre a mesa de jantar, um pedaço de pano de linho desbotado cobria o que ele chamava de “a joia da coroa”, um achado que o tirava do sono há semanas. Não era ouro, nem pedra preciosa. Era algo mais antigo, mais… faminto.

Elias era um homem solitário, com uma paixão quase febril por histórias. As suas eram escritas em cerâmica fragmentada, em ferramentas de pedra lascada, em moedas corroídas pelo tempo. Vivia de remessas eventuais de museus universitários, de pequenas doações de aficionados. A vida era simples, mas cada peça desenterrada era uma porta aberta para um tempo esquecido.

Desta vez, a porta se abriu para um pântano úmido, sob um céu cinzento que parecia pairar para sempre sobre o Vale do Jequitinhonha. Ele encontrara o objeto – um pequeno idolo esculpido em madeira escura e densa, a feição retorcida em uma expressão de dor perpétua – durante uma prospecção para um projeto arqueológico pouco financiado. A primeira noite, após a descoberta, foi marcada por um silêncio incomum na mata. Elias sentiu um arrepio frio, como se o próprio ar estivesse pesado de um olhar antigo.

Agora, em Paraty, o idolo parecia pulsar com uma energia sutil, quase inaudível. As noites de Elias se tornaram um tormento. Sonhos vívidos de um povo sacrificado, de uma fome que corroía a alma, assombravam seu sono. Sentia uma necessidade crescente de tocar o objeto, como um viciado busca sua dose, mas cada vez que seus dedos se aproximavam, uma onda de pânico gelado o impedia.

Sua única companhia, uma cadela vira-lata chamada Lua, antes vibrante e curiosa, agora passava os dias encolhida no canto da sala, um gemido baixo escapando de sua garganta quando Elias se aproximava do idolo. Os olhos castanhos de Lua, antes cheios de vida, pareciam opacos, cheios de um medo que Elias não conseguia decifrar.

Uma tarde, enquanto Elias examinava o idolo sob a luz do sol que entrava pela janela, sentiu uma pontada aguda na testa. Não era dor física, era como um pensamento alheio invadindo sua mente, uma voz arrastada, sussurrando promessas de poder e conhecimento em troca de… algo. Ele largou o idolo com um sobressalto, o coração batendo descompassado contra as costelas.

O dilema o corroía. A curiosidade científica lutava contra um instinto primal de autopreservação. Ele sabia que a maioria dos objetos amaldiçoados eram apenas folclore, mas aquela sensação… era diferente. Era como se a floresta, o tempo, a própria terra estivessem contidas naquele pedaço de madeira, e agora, em sua posse, aquilo transbordava.

Certa noite, a fome que ele sentia não era a fome de um homem que pulou o almoço. Era uma fome profunda, antiga, que vinha de dentro. Ele se viu diante do idolo, os dedos trêmulos estendidos. Lua, encolhida como sempre, soltou um latido agudo, um som de desespero.

Elias hesitou. Olhou para a cadela, para a janela que dava para a noite estrelada de Paraty, para as luzes distantes de um cotidiano que parecia tão alheio à sua luta. O que era mais valioso? O conhecimento proibido, a conexão com o passado mais sombrio, ou o latido desesperado de um ser vivo que o amava incondicionalmente? A resposta não era simples.

Ele afastou a mão do idolo, sentindo um alívio sufocante misturado a uma decepção amarga. A voz em sua cabeça silenciou, mas o eco do sussurro permaneceu, uma promessa tentadora pairando no ar. Elias pegou Lua no colo, sentindo o tremor em seu corpo. Ela lambeu seu rosto com uma força renovada.

Na manhã seguinte, Elias embalou o idolo em várias camadas de pano, colocou-o em uma caixa de madeira resistente e a trancou. Ele não o enterraria novamente, nem o venderia. A tentação era forte demais, tanto para ele quanto para qualquer outro que pudesse encontrá-lo. Onde guardar algo que parecia conter a fome de eras? Onde o peso de uma maldição se tornaria apenas um sussurro no véu do tempo, ou onde se manifestaria em um grito que ecoaria por gerações? A resposta, como tantas outras na sua vida de colecionador, permanecia enterrada.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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