Um músico que, ao tocar uma melodia antiga, invoca uma entidade aterrorizante.

Um músico que, ao tocar uma melodia antiga, invoca uma entidade aterrorizante.

O Violino e o Sussurro Antigo

O cheiro de mofo e café velho pairava no pequeno apartamento de João, um eterno aprendiz de violino em meio à agitação paulistana. As paredes finas mal isolavam os ruídos da cidade: o ronco distante de um ônibus, a sirene intermitente, o choro de um bebê no andar de cima. Mas ali, naquele cubículo, João criava seu próprio universo sonoro, moldado por dedilhados hesitantes e a busca incessante pela perfeição que parecia sempre escapar.

Ele passava horas debruçado sobre partituras empoeiradas, relíquias de seu avô, um músico de renome esquecido pelo tempo. Um dia, uma folha de papel amarelada, marcada por uma caligrafia elegante e quase ilegível, chamou sua atenção. Era uma melodia sem título, apenas um conjunto de notas e símbolos enigmáticos que pareciam dançar na página. Uma intuição, mais forte que a lógica, o impulsionou a tentar.

Naquela noite chuvosa, a melodia, outrora silenciosa, ganhou vida sob seus dedos. O violino, um velho companheiro de mogno e resina, gemeu e chorou notas que João nunca antes havia extraído dele. Não era uma música alegre, nem triste, mas algo ancestral, que ressoava em um lugar profundo e desconfortável dentro de sua alma. A chuva lá fora intensificou-se, tamborilando nas vidraças como um coro desafinado. As luzes da rua projetavam sombras fantasmagóricas no quarto.

De repente, um calafrio percorreu sua espinha. O ar ficou mais denso, carregado de um odor adocicado e pútrido, como flores em decomposição. Os pelos de seus braços se eriçaram. Ele parou de tocar, o arco suspenso no ar. O silêncio que se seguiu era opressivo, preenchido por um som sutil, quase imperceptível: um sussurro.

O sussurro parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum ao mesmo tempo. Eram palavras indistintas, em uma língua que João não conhecia, mas que, de alguma forma, compreendia em seu âmago. Eram promessas de poder, de conhecimento, de um fim para a solidão que o consumia. A entidade não tinha forma definida, era uma presença imponente, um manto de escuridão que parecia envolver o quarto, roubando a pouca luz que restava.

Um dilema cruel se instalou em João. A melodia, ele agora percebia, era um portal. A entidade oferecia algo que ele ansiava desesperadamente: reconhecimento, a chance de ser mais do que apenas um músico anônimo. Mas o preço era assustadoramente incerto.

“Quem é você?”, ele sussurrou, a voz trêmula.

O sussurro se intensificou, um murmúrio de milhões de vozes se fundindo em uma única e arrepiante cadência. Era a fome da eternidade, a ânsia por experimentar o mundo através de um corpo mortal, de sentir a vida que ele há muito havia perdido.

João fechou os olhos. Imaginou o rosto de sua mãe, que o incentivava a desistir da música para buscar um emprego “de verdade”. Lembrou-se dos olhares de desdém dos colegas de conservatório, dos críticos que nunca o notaram. A solidão apertava seu peito como um punho de ferro.

Abriu os olhos. O violino ainda em suas mãos parecia vibrar com uma energia sinistra. O sussurro o convidava.

Ele ergueu o arco. O que viria a seguir? Seria a glória ou a perdição? A melodia antiga tinha desvendado um segredo, mas a qual destino ele levaria? João hesitou, o som da chuva batendo nas janelas ecoando o turbilhão em sua mente. O sussurro esperava, paciente e terrível. A decisão, por enquanto, pairava suspensa, tão etérea quanto a própria entidade que ele havia convocado.


Por: Catarina de Assis Mendonça

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