A Casa das Sombras Dançantes

A Casa das Sombras Dançantes

O cheiro de maresia misturado ao jasmim, ainda fresco do fim de tarde, pairava no ar pesado e úmido da varanda. Liana, com seus cachos castanhos presos em um coque frouxo, rolava os olhos para as piadas de Pedro, um vulcão adormecido de bom humor, que tentava, sem sucesso, tirar do sério a sisudez calculada de Rafaela. Do outro lado da mesa de madeira desgastada, Caio rabiscava em um caderno de capa gasta, o som suave do lápis arranhando o papel quase inaudível sob o burburinho das cigarras. Era o ritual de sempre nas férias em Itacaré, um refúgio antigo da família de Liana, uma casa charmosa e um tanto dilapidada à beira mar, que guardava segredos sussurrados pelas correntes de vento e pelo tempo.

Naquela noite, porém, algo parecia diferente. A lua, redonda e pálida, banhava o jardim com uma luz fantasmagórica, alargando as sombras das mangueiras centenárias e da bougainvillea exuberante. Enquanto o vinho descia em goles lentos e as conversas vagavam sem rumo, Liana foi a primeira a notar. Uma sombra, projetada pela lanterna pendurada na varanda, dançou de forma peculiar. Não era o movimento vacilante do vento. Era um contorno mais definido, um contorcer que parecia… intencional.

“Vocês estão vendo isso?”, murmurou Liana, apontando para a parede de azulejos desgastados.

Pedro, sempre o mais descontraído, deu de ombros. “É o ventinho, amiga. Ou a cachaça que tá batendo.”

Mas Rafaela, de sobrancelhas arqueadas, acompanhou o olhar de Liana. A sombra, uma silhueta alongada e esguia, parecia se desprender da moldura da janela, deslizando pelo chão como uma serpente de breu. Caio, finalmente erguendo o olhar do caderno, franziu a testa.

O que começou como um estranhamento sutil se transformou em uma inquietação crescente. As sombras no jardim pareciam ganhar vida própria. Figuras indistintas se moviam nos recantos escuros, alongando-se e retraindo-se em movimentos hipnóticos. Não havia som, apenas a ausência de luz que criava formas traiçoeiras. Uma sombra que lembrava a mão de alguém se esticou em direção à janela da sala, onde as luzes ainda estavam acesas. O coração de Liana martelava no peito. Ela podia sentir um frio que não vinha do mar.

Pedro, pela primeira vez, parecia genuinamente perturbado. Ele se levantou, a risada borbulhante contida. “Ok, isso é… esquisito. Não é possível.”

Rafaela, a pragmática do grupo, tentava racionalizar. “Deve ser alguma ilusão de ótica. A luz da lua, a umidade, o cansaço…”

Mas as sombras não se contentavam com as explicações lógicas. Elas se aprofundavam, se fundiam, criavam figuras que pareciam evocar medos ancestrais. Liana se sentiu presa em uma lembrança remota de infância, um medo infantil de que algo se escondesse sob a cama, agora amplificado pela realidade cruel. Ela viu, ou pensou ter visto, um contorno que se assemelhava ao de seu pai, que se fora há muitos anos, parado em frente a uma das janelas, imóvel.

Caio, sempre o observador silencioso, agora olhava para as sombras com uma intensidade diferente. Seus olhos castanhos pareciam penetrar a escuridão, buscando algo que os outros não conseguiam ver. Ele se aproximou da parede onde a primeira sombra dançara, a mão hesitante em estender-se.

“Talvez… talvez elas queiram algo”, disse ele, a voz baixa, quase um sussurro.

Pedro tentou uma brincadeira para aliviar a tensão, mas as palavras morreram em seus lábios ao ver uma sombra em forma de pássaro, com asas enormes, planar sobre a casa. Não era um jogo de luzes. Era algo mais antigo, mais real.

Rafaela, por mais que lutasse contra o instinto, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A segurança da casa, seu refúgio de férias, se desfazia em pedaços sob o ataque silencioso da escuridão. Ela pensou em sua mãe, que sempre dizia que os problemas vêm quando menos esperamos.

Liana sentiu um puxão no braço. Era Pedro, seus olhos arregalados, apontando para a porta de entrada. Uma sombra, mais densa e escura do que as outras, começava a se formar sob a fresta, como se algo esperasse para entrar. O cheiro de jasmim parecia ter se intensificado, agora com um toque adocicado e enjoativo.

Eles se entreolharam, um medo compartilhado que transcendia palavras. As sombras continuavam seu balé silencioso, mas agora, parecia que elas não eram apenas projeções, mas sim manifestações. Manifestações de quê? De arrependimentos? De medos não ditos? De histórias antigas que a casa guardava em suas paredes úmidas e em seu telhado de telhas vermelhas desgastadas pelo sol e pela chuva?

Caio, com o caderno ainda nas mãos, pegou o lápis e começou a desenhar freneticamente, as linhas escuras sobre o papel branco, imitando as formas que se contorciam lá fora. Liana, sentindo um desespero crescente, agarrou a mão de Pedro. Rafaela, pela primeira vez, não sabia o que dizer, não tinha uma explicação pronta.

A sombra sob a porta se adensou, quase sólida. O que elas fariam? Fugir? Enfrentar? E, mais importante, o que as sombras queriam? A casa das férias, antes um refúgio de paz, tornara-se um palco para uma peça desconhecida, onde a luz definhava e as sombras ganhavam uma vida aterradora e, talvez, reveladora. A noite ainda era longa.


Por: Beatriz Almeida Vianna

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *