Uma família presa em um farol assombrado por criaturas marinhas.

Uma família presa em um farol assombrado por criaturas marinhas.

O Farol da Saudade

O vento salgado chicoteava a face de Dona Lúcia, a cada rajada, um lembrete mais forte da vastidão que a separava da terra firme. O cheiro de maresia, antes reconfortante, agora se misturava a um odor acre, pungente, como peixe podre sob o sol causticante. Fazia três dias que a embarcação que os levaria para casa, a Ilha das Flores, não aparecia. Três dias de uma espera tensa, roída pela incerteza e pela fome que começava a apertar.

Seu Manuel, o faroleiro, um homem enrugado pelo sol e pela vida dura na costa, tentava disfarçar a apreensão. A cada noite, o brilho constante da lanterna parecia menos um farol de esperança e mais um convite sombrio para o desconhecido. Ele passava horas no topo, com seu binóculo desgastado, varrendo o horizonte, mas apenas o mar escuro e o céu sem estrelas respondiam ao seu olhar.

João Pedro, o filho de dezesseis anos, antes um rebelde silencioso, agora se debruçava sobre as escadas em espiral, os dedos pálidos arranhando o ferro frio. Ele sentia a inquietação dos pais como um peso no peito. Lembrou-se das histórias que seu avô contava sobre as “Sereias da Maré Negra”, criaturas das profundezas que, segundo ele, atraíam os barcos para a perdição com seus cantos melancólicos. Na época, achava tudo uma invenção para assustar crianças. Agora…

E Maria Clara, a caçula de oito anos, com seus cachos rebeldes e olhos que absorviam tudo, era a única que ainda mantinha um fio de inocência. Ela desenhava na areia úmida que a maré insistia em apagar, figuras estranhas, com escamas reluzentes e olhos sem pálpebras. Às vezes, sussurrava para os pais sobre os “amigos do mar”, que batucavam nas paredes do farol com suas barbatanas grossas durante a noite.

A primeira vez que ouviram os ruídos, naquela segunda noite, pensaram ser apenas o mar revolto batendo nas pedras. Mas os sons eram rítmicos, insistentes. Um som de raspagem, como unhas grossas arranhando concreto. E depois, um silvo baixo, um lamento aquático que parecia vir de dentro da própria estrutura.

Dona Lúcia se encolheu na cama estreita, ouvindo o coração descompassado de Seu Manuel do outro lado do cômodo. João Pedro se levantou, pegou uma faca de peixe que guardava com carinho, e foi até a janela. A luz da lanterna girava, iluminando a escuridão e, por um instante, ele jurou ter visto algo deslizar pelas águas escuras, algo grande, com um brilho opalescente.

Na terceira noite, os barulhos se intensificaram. A água começou a subir mais rápido do que o normal, lambendo a base do farol com uma força estranha. Maria Clara acordou chorando. “Eles querem entrar, mamãe. Os amigos querem brincar.” Seu Manuel, com o rosto mais pálido do que o normal, segurou a lanterna com firmeza. João Pedro tentava manter a calma, mas seus punhos estavam cerrados.

Então, veio o som mais perturbador. Um bater surdo e constante contra a porta de metal que dava acesso à escada. Era um som que não parecia ser de ondas. Era mais… orgânico. E acompanhava o silvo lamentoso que agora parecia mais próximo, vindo de fora, ecoando pela estrutura.

“O que é isso, pai?”, perguntou João Pedro, a voz embargada.

Seu Manuel apertou a lanterna. Seus olhos, antes cheios de resignação, agora brilhavam com um medo ancestral. “Não sei, meu filho. Mas não é o mar que eu conheço.”

Dona Lúcia se aproximou da porta, hesitante. Ela podia sentir as vibrações através do metal, algo pesado se movendo do lado de fora. A luz da lanterna girava, lançando sombras dançantes pela sala. E então, em um dos giros, a luz iluminou a janela do porão. Por um instante fugaz, ela viu. Uma forma escura, molhada, com olhos que refletiam a luz como pérolas negras, e tentáculos finos e ondulantes que se agarravam à rocha. Não era uma invenção de avô. Era algo real.

O silvo aumentou, um coro agora, vindo de todos os lados. A água subia. O bater na porta ficou mais forte. Maria Clara, assustada, agarrou a mão de João Pedro. “Eles têm fome, né, João?”, sussurrou, os olhos arregalados.

João Pedro olhou para o pai, depois para a filha. Ele não tinha respostas. Apenas o eco de um canto marinho que parecia prometer um fim, ou talvez um recomeço, nas profundezas escuras. A luz do farol continuava a girar, um farol em meio a uma tempestade que não era feita de vento e chuva, mas de algo muito mais antigo e insaciável. E a porta do porão, cada vez mais, cedia ao som persistente e molhado.


Por: Marina Rocha Antunes

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