A Sombra do Barroco

A Sombra do Barroco

O ar pesado do Rio de Janeiro, impregnado pelo sal do mar e pelo aroma adocicado das mangueiras em flor, trazia consigo uma melancolia que parecia pairar sobre a casa antiga em Santa Teresa. Era lá que morava Dona Eulália, uma senhora de cabelos prateados emoldurando um rosto vincado por sorrisos contidos e pela dor silenciosa que habitava seus olhos cor de azeitona.

A casa, um casarão colonial com azulejos portugueses desbotados e um jardim que outrora fora exuberante, guardava seus segredos em cada rachadura das paredes, em cada rangido das escadas de madeira. E o segredo mais sombrio, o mais doloroso, era o pequeno crucifixo de prata oxidada que repousava sobre um altar improvisado na sala de jantar. Não era um crucifixo qualquer. Era o Legado, como Eulália o chamava em sua solidão.

O Legado chegara à família de Eulália através de um tio distante, um colecionador excêntrico que o adquirira em uma feira de antiguidades em Paraty. Diziam as lendas que o objeto fora profanado em tempos remotos, amaldiçoado por um pacto sombrio. Eulália, ainda jovem, desdenhara dos avisos, encantada pela delicadeza da peça, pelo brilho opaco da prata antiga.

O primeiro a se ir foi seu esposo, o bom e leal Seu Antônio. Um infarto súbito, inesperado, no auge de sua vitalidade. Eulália sentiu a primeira fisgada daquele pressentimento gélido, um arrepio que a fez olhar para o crucifixo com uma apreensão estranha. Depois, veio a filha, Ana Clara, com sua alegria contagiante e seus sonhos de se tornar pintora. Uma doença rara, agressiva, que a levou em poucos meses, deixando para trás apenas o cheiro de tinta a óleo e uma saudade que dilacerava a alma de Eulália.

O neto, Pedro, o último resquício de sua família, um garoto cheio de vida, um atleta promissor, sofreu um acidente de carro terrível. O carro, um presente de Eulália, virou uma carcaça retorcida, e Pedro, o amado Pedro, nunca mais abriu os olhos.

Eulália, agora curvada pelo peso de tantas perdas, não tinha mais forças para negar. O crucifixo, frio em sua mão trêmula, parecia pulsar com uma energia nefasta, uma aura invisível que arrastava consigo tudo o que ela amava. As tragédias não eram coincidências. Eram colheitas.

Certo dia, o jovem padre da paróquia vizinha, o Padre Miguel, um homem de fé férrea e um olhar que parecia enxergar além do visível, visitou Eulália. Ele sentira a dor que emanava da casa, um eco de sofrimento que o chamara. Ao ver o crucifixo, seu rosto empalideceu.

“Dona Eulália”, disse ele, a voz embargada, “este objeto não é uma bênção. É uma ferida aberta. Uma porta para a escuridão.”

Eulália confessou tudo, as lágrimas rolando por seu rosto enrugado, a culpa pesando em cada palavra. O Padre Miguel, com a paciência de um anjo e a sabedoria dos séculos, ouviu, sem julgamento.

“O mal, Dona Eulália, não reside apenas no objeto”, explicou ele. “Reside na atração que ele exerce, no vazio que a dor nos faz buscar. O Legado se alimenta da nossa desesperança. Ele não atrai a morte, ele a convida para um banquete servido pela nossa própria angústia.”

O padre propôs um ritual, uma forma de quebrar o ciclo. Não era um exorcismo, mas uma purificação, um ato de desapego. Eulália, com a pouca força que lhe restava, concordou.

Na noite seguinte, sob a luz pálida da lua cheia que espreitava entre as nuvens de chuva, Dona Eulália e o Padre Miguel estavam na sala de jantar. O crucifixo repousava entre eles, emitindo um frio que parecia penetrar os ossos. O padre começou a rezar, não em latim, mas em português, palavras de conforto e libertação. Eulália, com a voz falha, lia passagens bíblicas que falavam de esperança e renascimento.

Enquanto as palavras ecoavam, um vento forte varreu a casa, fazendo as janelas tremerem. Um vulto escuro pareceu se materializar por um instante no canto da sala, e um gemido sutil ecoou, como um sopro de desespero. Eulália sentiu um aperto no peito, um medo ancestral que ameaçava engoli-la. Mas ela olhou para o Padre Miguel, viu a serenidade em seu rosto, a luz de sua fé inabalável.

Então, em um ato de pura coragem, Eulália pegou o crucifixo. A prata estava gelada, e ela sentiu uma pontada de dor em seus dedos. Mas ela não soltou. Em vez disso, com um grito que ecoou por toda a casa antiga, ela o atirou contra a lareira apagada.

O som foi seco, metálico. Um estilhaço de prata voou, e um fio de fumaça escura subiu, rapidamente dissipando-se no ar. Um silêncio profundo se instalou, apenas quebrado pelo tic-tac insistente do relógio de pêndulo na sala de estar.

Dona Eulália, exausta, mas estranhamente leve, sentou-se em sua poltrona. O vazio na sala de jantar era palpável, mas não era mais um vazio de dor, e sim um espaço a ser preenchido.

O Padre Miguel a olhou com um sorriso gentil. “O ciclo está quebrado, Dona Eulália. A memória deles permanecerá, mas a sombra se foi.”

Eulália assentiu, uma lágrima solitária descendo por sua bochecha. Ela sabia que a cura seria longa, que as cicatrizes permaneceriam. Mas pela primeira vez em muitos anos, ela sentiu um vislumbre de paz.

A casa de Santa Teresa continuou ali, o vento ainda sussurrando em seus corredores antigos. O que havia sido do crucifixo, ninguém sabia ao certo. Alguns diziam que a prata se desfez em pó, outros que se transformou em algo irreconhecível. Mas o que Eulália sabia, com a certeza que nasce da dor e da superação, era que a maldição não era inerente ao objeto, mas à forma como permitíamos que a dor nos definisse. E naquela noite, sob a lua que finalmente rompia as nuvens, Dona Eulália escolheu viver, não mais assombrada, mas liberta. O que isso significaria para o futuro, ela ainda não sabia, mas pela primeira vez, a incerteza era um convite, e não uma sentença.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *