O som inconfundível que é a única evidência deixada para trás.

O som inconfundível que é a única evidência deixada para trás.

O Riff de Carmela

O ventilador do Tupi girava, preguiçoso, jogando o mesmo ar abafado do fim de tarde para todos os cantos do quarto pequeno. O cheiro de mofo e incenso de lavanda, vindo do altar improvisado na cômoda, lutava contra a fragrância mais doce, quase enjoativa, do jasmim que subia pela janela entreaberta. Dora, encolhida na cama de solteiro com o edredom fino puxado até o queixo, tentava ignorar a agitação do bairro: a gritaria dos moleques jogando bola na rua de paralelepípedos, o barulho distante de uma britadeira, o latido insistente de um cachorro na viela ao lado. Nada disso a alcançava de verdade. Só havia um som, um único som, que ressoava em sua memória como um eco persistente, e que, por mais que ela tentasse, se recusava a ser apagado.

Era o riff. O riff inconfundível de guitarra que Carmela tocava.

Dora fechou os olhos com força, as pálpebras já marcadas pelas lágrimas secas. A imagem de Carmela vinha em flashes, não em sequências narrativas, mas em fragmentos vívidos: o cabelo escuro e rebelde caindo sobre o rosto enquanto ela concentrava os dedos nas cordas; o sorriso torto, cheio de dentes um pouco tortos, que aparecia quando acertava aquele solo que Dora tanto amava; a camisa de banda amassada, sempre a mesma, que parecia ter sido feita sob medida para os ombros dela.

Aquela guitarra, um modelo velho e arranhado que Carmela insistia em chamar de “Velha Guerreira”, era sua companheira fiel. Nas noites de sábado, quando a casa ficava em silêncio e o pai já roncava na sala assistindo novela, elas se reuniam no quintal. Carmela, deitada na rede, dedilhava a guitarra e cantava baixinho. Dora, menor na época, sentava-se no chão úmido, os pés descalços tocando a terra fria, e escutava. Eram essas melodias que a embalavam, que a faziam se sentir segura, que criavam um universo particular para elas duas, longe do pragmatismo duro da vida.

O sumiço de Carmela foi tão abrupto quanto um acorde dissonante. Um dia, ela estava ali, o cheiro de suor e cigarro de palha misturado ao aroma da guitarra. No outro, o silêncio. Sem explicações, sem despedidas, apenas um vazio imenso onde antes havia música e risadas. A família de Carmela, vizinhos, a polícia… todos procuraram. Mas não encontraram nada. Nenhum vestígio, nenhuma pista concreta. A vida seguiu, implacável, como as buzinas impacientes no trânsito da Avenida Brasil, e para a maioria, Carmela se tornou apenas uma lembrança desbotada, um ponto de interrogação na história do bairro.

Para Dora, porém, Carmela era a trilha sonora. E o riff era o refrão.

Ela tentou. Oh, como ela tentou. Tentou se agarrar a outras coisas: a fotos desbotadas em álbuns empoeirados, a cartas com a caligrafia desajeitada de Carmela, a um chaveiro de plástico em forma de estrela que ela lhe dera. Mas nada disso evocava a presença dela com a mesma força que aquele som. Era como se a alma de Carmela tivesse se materializado naquele encadeado de notas, um grito silencioso que só Dora conseguia ouvir.

Hoje, Dora completava trinta anos. A festa seria simples, na cozinha apertada da casa que dividia com a mãe, o aroma de bolo assando lutando contra o perfume do desinfetante de pinho. As tias viriam com seus comentários sobre o casamento que nunca chegava, os tios com suas piadas gastas. Dora sabia que tudo seria normal. Mas ela sentia um aperto no peito, uma ansiedade que não se dissipava.

Quando o primeiro convidado chegou, a campainha soou como um alarme. Dora se levantou, arrumou o vestido florido, sentiu o toque frio da pulseira de prata que Carmela lhe dera de presente de aniversário. Caminhou até a porta. Parou. O homem parado ali, com um sorriso tímido e um buquê de margaridas nas mãos, era conhecido. Era o primo de Carmela, o que morava em Minas Gerais e que ela mal lembrava. Ele nunca havia aparecido nas festas de aniversário.

“Dora? Parabéns”, ele disse, a voz um pouco trêmula. “Eu… eu precisei vir. Minha mãe… ela me pediu. Ela disse que você talvez gostasse.” Ele estendeu o buquê. Dora pegou, sentindo o frescor das pétalas em seus dedos.

“Obrigada”, Dora murmurou, sem saber o que mais dizer.

O primo hesitou. “Tem algo que… que eu não sei se você se lembra. Carmela. Ela me deixou isso. Pra você. Pra quando você fizesse… bem, pra agora.” Ele tirou do bolso interno do casaco um pequeno envelope, desgastado nas bordas.

Dora sentiu o coração disparar. Abriu o envelope com mãos trêmulas. Dentro, não havia uma carta. Havia uma fita cassete. Uma fita antiga, com a etiqueta amarela descolando, e escrito à mão, em letras tortas, o nome: “Para Dora. Riff.”

O convite para a festa se tornou um borrão. As conversas se silenciaram. Apenas o tic-tac do relógio na cozinha parecia ganhar vida. Dora pegou o toca-fitas velho da mãe, que guardava num armário há anos, mais por nostalgia do que por utilidade. O clique da fita entrando no aparelho era o único som audível.

E então, veio.

O som inconfundível. O riff de Carmela. Mais puro, mais vibrante do que ela jamais recordara. Era como se ela estivesse ali, tocando para ela naquele instante, as notas flutuando no ar, acariciando a pele de Dora, preenchendo cada centímetro daquela cozinha apertada com a presença que ela tanto amava e que tanto sentia falta. As lágrimas voltaram, mas desta vez, eram diferentes. Eram lágrimas de reconhecimento, de reencontro.

O riff terminou. Um silêncio pairou. E então, a voz de Carmela, rouca e doce, ecoou pela caixinha barulhenta do toca-fitas.

“Feliz aniversário, minha Dora. Espero que você goste. É só um pedacinho… do nosso mundo. O resto… ah, o resto você sabe, né? O resto a gente carrega.” A gravação parou abruptamente.

Dora ficou parada, o toca-fitas ainda ligado, o silêncio após a voz de Carmela mais ensurdecedor que qualquer barulho do bairro. Ela olhou para o primo, que observava com um misto de dor e curiosidade. Olhou para as margens do toca-fitas, para a fita solitária. O que mais Carmela deixara para ela? Onde estava o resto?

A resposta, ela sabia, não estava ali. Estava em algum lugar, talvez em outra fita, talvez em outra lembrança, talvez em outro som que ainda esperava para ser descoberto. Ou talvez, o resto fosse apenas aquilo: a música, a memória, e a pergunta que ficava, suspensa no ar, como a última nota de um acorde inacabado. O que ela faria agora com aquele presente? O que era o “nosso mundo” que Carmela mencionara? E onde estaria Carmela, agora, que havia deixado para trás não apenas uma melodia, mas uma porta aberta? A festa continuou, os convidados retornando aos seus assados e conversas, mas para Dora, tudo havia mudado. O som inconfundível de Carmela ecoava em sua alma, e ela sabia que, a partir dali, sua jornada seria a de procurar, com a melodia como bússola, o que mais Carmela havia deixado para trás.


Por: Beatriz Almeida Vianna

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