O Rosto Por Trás do Barro

O Rosto Por Trás do Barro

O sol de novembro castigava as telhas do morro, fazendo o ar da viela cheirar a poeira seca e suor velho. Dona Irene, com o avental manchado de fubá, observava da janela a movimentação incomum. A polícia, com aqueles uniformes que sempre traziam um ar de desgraça, circulava pela casa do Seu Zé, o artesão. Ele, um homem de poucas palavras e mãos calejadas, que criava santos e demônios de barro com a mesma devoção.

O corpo foi encontrado na manhã de terça-feira. Não houve alarde, o morro aprendera a conviver com o silêncio dos horrores escondidos. Mas o nome de Seu Zé era diferente. Ele era parte da paisagem, uma figura constante, quase um ponto de referência para quem subia ou descia.

O investigador, um rapaz novo com olheiras profundas e o peso do mundo nas costas, era o Delegado Lucas. Ele já vira muita coisa, mas o olhar de Dona Irene, que transbordava uma mistura de pesar e algo mais, algo como uma estranha familiaridade, o intrigava.

“Ele era um homem bom, doutor”, disse Dona Irene, a voz rouca de quem falava pouco. “Fazia as imagens com tanta fé. Dizia que no barro podia botar tudo o que sentia.”

Lucas assentiu, as mãos enfiadas nos bolsos da calça surrada. Entrou na casa de Seu Zé. O cheiro de terra molhada pairava no ar, misturado a um odor adocicado e nauseante que ele reconheceu tarde demais. Pilhas de argila aguardavam, algumas já modeladas em formas grotescas, outras apenas um amontoado informe. E ali, no canto da oficina, sobre uma bancada de madeira lascada, estava ela.

Não era uma máscara de carnaval, nem um adorno ritualístico. Era uma representação crua, desprovida de qualquer beleza estética. O barro estava moldado em um rosto distorcido, a boca aberta em um grito mudo, os olhos escavados em buracos fundos e sombrios. Era a personificação do ódio, da frustração, da dor.

Lucas pegou a peça com luvas. O barro ainda estava ligeiramente úmido, como se tivesse sido feito horas antes. Olhou para as mãos que a criaram, mãos que também moldavam anjos de asas delicadas e santos de feições serenas. Era a mesma técnica, a mesma habilidade, mas a intenção, ah, a intenção era outra.

O corpo de Seu Zé jazia no chão do quarto, um golpe preciso na nuca. Nenhuma luta aparente. Apenas o silêncio pesado da morte. E a máscara, abandonada na oficina, como um testemunho grotesco de um conflito interno.

Enquanto a perícia trabalhava, Lucas voltou a falar com Dona Irene. Ela estava sentada em um banquinho na frente de casa, varrendo as folhas secas que o vento insistia em espalhar.

“Seu Zé guardava muita coisa dentro dele, doutor”, ela confessou, sem olhá-lo nos olhos. “A gente vê o rosto que as pessoas mostram. Mas o barro… o barro ele não mente.”

Lucas pensou nas inúmeras máscaras que as pessoas usavam todos os dias, disfarçando suas verdadeiras intenções por trás de sorrisos forçados e palavras polidas. Mas ali, naquela casa simples no morro, ele vira uma máscara que não escondia, mas revelava. Uma máscara de barro, crua e brutal, que gritava a verdade sobre o homem que a criou.

Ele não encontrou um assassino com um nome e um motivo claro. Encontrou uma manifestação visceral da alma humana, onde a arte se misturava à violência em um abraço terrível. O assassino, o que quer que tenha empunhado a arma, era tão parte de Seu Zé quanto os anjos que ele modelava.

Lucas saiu da viela, o sol ainda forte, mas agora parecia mais opaco. A imagem da máscara de barro, com seus olhos vazios e a boca aberta em um lamento silencioso, ficaria com ele. A identidade do assassino podia ter se perdido nas sombras do morro, mas a natureza do mal, essa, ele a vira moldada em argila, exposta de forma nua e crua. E sabia que, em algum lugar dentro de si, todos carregavam sua própria máscara de barro, esperando o momento de se revelar.


Por: Ricardo Soares Guedes

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