A história contada em flashbacks que revela gradualmente o culpado.
O Fio Solto na Trança
A poeira fina do sertão parecia ter se infiltrado em cada poro da minha pele, um lembrete constante da terra seca e das promessas que se esvaíam como a água em dia de sol a pino. A velha cadeira de balanço rangia sob o meu peso, um som familiar que ecoava o tempo que passara, o tempo que se teimava em não voltar. Lá fora, o crepúsculo tingia o céu de laranjas e roxos, cores que pareciam zombar da minha solidão.
*A imagem de Ana vinha em flashes. O vestido branco, esvoaçante como uma asa de borboleta, a risada dela ecoando pelos campos de girassóis. Era o último dia que a vi sorrindo assim, antes da sombra cair sobre tudo.*
O gosto amargo do café frio na boca. O cheiro acre de mofo no meu quarto, onde o papel de parede descascava em tiras longas, como pele ressecada. O silêncio, aquele silêncio pesado que se instala quando as vozes que amávamos se calam para sempre.
*Lembro-me da brasa no olhar de Dudu, o sobrinho dela, quando perguntávamos sobre os acontecimentos daquela tarde. Uma faísca de algo que ele tentava esconder, um rubor que subia pelas suas bochechas magras.*
As contas empilhadas na mesa da cozinha. O barulho constante do ventilador velho tentando, em vão, mover o ar pesado e quente. Os olhares furtivos dos vizinhos na venda, aqueles olhares que diziam “tadinho dele” e “o que será que aconteceu de verdade?”.
*E as palavras da Dona Maria, a vizinha de longa data, sussurradas perto do portão, enquanto ela me oferecia um pedaço de bolo. “Ele era um bom rapaz, aquele teu compadre. Mas um homem, sabe como é, às vezes se deixa levar…” O quê? Levado por quê?*
O peso da saudade me esmagava como um bloco de concreto. A saudade da voz dela chamando meu nome, da sua mão quente na minha, do jeito que ela inclinava a cabeça quando escutava meus desabafos.
*Naquela noite, a chuva caía forte, tamborilando no telhado de zinco. Eu estava no bar, tentando afogar as mágoas na cerveja barata, quando ouvi a discussão. A voz alterada dele, Dudu, e a voz mais suave, tentando acalmar. Ouvi um grito, abafado pela trovoada. E depois, o silêncio. Um silêncio diferente do que agora me consome.*
O calor insuportável da tarde de domingo. O cheiro de churrasco vindo das casas vizinhas, um cheiro que antes me trazia alegria, mas agora apenas intensificava a ausência. O barulho das crianças brincando na rua, um som que me lembrava o que eu havia perdido.
*Ele me contou, dias depois, ofegante, os olhos arregalados. Falou de uma briga, de um empurrão. “Foi sem querer, Tio. Juro que foi sem querer.” Mas o tremor na sua voz, o suor frio que brotava na sua testa… Era medo? Culpa?*
Os velhos álbuns de fotografia empoeirados no armário. Rostos sorrindo em tempos mais fáceis. Rostos que se foram, um a um. A sensação de estar sozinho num mundo que continuava girando, indiferente à minha dor.
*E as lágrimas de Ana, não de tristeza, mas de raiva, quando ela me confrontou. “Você sabia, não sabia? E não fez nada.” Ela me olhava com os mesmos olhos que eu amava, mas agora carregados de uma acusação que me corroía. Por que ela me olhava assim? O que mais ela sabia?*
O sol se pondo completamente, deixando um rastro de escuridão que engolia a paisagem familiar. O grilo solitário iniciando seu canto noturno. A luz fraca da lua se esgueirando pela janela, iluminando a poeira suspensa no ar. E no meu peito, uma pergunta que se recusava a dormir. Uma pergunta que, talvez, a resposta estivesse em um fio solto na trança do tempo, esperando para ser desvendada. Ou para me enforcar de vez.
Por: Ricardo Soares Guedes

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