A Ausência de Seu Doutor
O cheiro de mofo pairava no ar úmido da lavanderia comunitária. Dona Elza, com os joelhos doloridos e as mãos enrugadas esfregando uma peça de roupa de cama que parecia não querer se livrar da mancha amarelada, suspirou. Mais um dia de luta contra a sujeira e a saudade. Seu Manuel, Seu Manuel… o nome ecoava em sua mente como um mantra doloroso. Ele se fora há quase um mês, levado por um infarto fulminante enquanto dormia, deixando um silêncio que se instalou na pequena casa do bairro de Vila Mariana como uma visita indesejada e permanente.
A polícia fizera seu trabalho: o corpo levado, o atestado de óbito emitido, o velório modesto com pouquíssimos vizinhos curiosos e alguns parentes distantes. Entendido. Finalizado. Um ponto final abrupto na história de uma vida que, para Dona Elza, era todo o seu universo. Mas então, algo aconteceu. Algo impossível.
Foi o Seu Antônio, da mercearia da esquina, quem deu a notícia. Com a voz embargada de espanto, ele a chamou de lado, os olhos arregalados por trás dos óculos grossos. “Elza, minha amiga… não vai acreditar. Vi o Manuel.”
Dona Elza sentiu o chão sumir sob seus pés. Uma risada nervosa escapou de seus lábios. “Seu Antônio, o senhor está me pregando uma peça.”
“Não, Elza. Juro por Deus. Lá no Parque do Ibirapuera. Perto do lago. Deitado… parecia que estava dormindo. Um cara com uma camisa azul clara, igual àquela que ele gostava de usar para passear. Cheguei mais perto… era ele. Com certeza era ele.”
O corpo de Seu Manuel, o corpo que ela vira ser colocado no caixão, o corpo que ela imaginara em seu sono agitado, estava, segundo Seu Antônio, reaparecido. Em um parque, a quilômetros de distância de onde o silêncio o havia encontrado.
A incredulidade lutava ferozmente contra uma centelha de esperança, um fio tênue que se esticava em direção ao absurdo. Ela correu. Deixou a roupa de molho, a bacia virada no chão. Pegou o ônibus lotado, sentindo o calor pegajoso do dia e o suor escorrendo por suas costas. No Ibirapuera, o cheiro de grama molhada e o burburinho de conversas e risadas pareciam distantes, irreais.
Procurou o lago. Seus olhos, acostumados a buscar o rosto do marido em meio à multidão, varriam a paisagem com urgência febril. Viu casais passeando, crianças correndo, um artista pintando a paisagem. E então, num banco afastado, sob a sombra de uma paineira, viu uma figura. Um homem. Vestindo uma camisa azul clara.
Seu coração disparou. O ar faltava. Era ele. Os cabelos grisalhos revoltos pelo vento, a feição serena. Mas… mas era impossível. O corpo dele estava em uma sepultura. A sepultura que ela visitara três semanas antes, deixando um pequeno vaso de violetas sobre a terra fria.
Ela se aproximou devagar, cada passo um convite à realidade ou à loucura. O homem não se moveu. Ele estava imóvel, com os olhos fechados, a respiração tão superficial que mal se percebia. Dona Elza, trêmula, esticou a mão. Queria tocar o rosto dele, sentir a pele, ter certeza.
Mas algo a deteve. Não era o medo de que fosse um impostor, não era a constatação gélida de que era apenas uma semelhança perturbadora. Era a profundidade daquele sono. Um sono que parecia diferente, mais profundo, mais… intencional. E no bolso da camisa azul clara, um pequeno pedaço de papel dobrado. Ela o pegou com dedos vacilantes. Desdobrou.
Uma única frase escrita com a letra inconfundível de Seu Manuel:
“Onde o corpo repousa, a alma já não procura.”
Dona Elza olhou para o homem no banco, para a natureza ao redor, para a vida que seguia em seu curso indiferente. As lágrimas agora corriam sem controle, mas não eram apenas de tristeza. Eram de confusão, de uma dor resignada e de uma pergunta que a assombraria para sempre: o que significa o corpo que reaparece onde a alma já não está? O que seu Manuel, o seu doutor, estava tentando lhe dizer naquele último e enigmático recado?
Por: Ricardo Soares Guedes

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