A ilusão que confunde a investigação, sugerindo um culpado impossível.
A fumaça densa ainda pairava no ar da pequena quitinete, mesmo após horas da chegada da perícia. O cheiro acre de algo queimado, misturado ao perfume adocicado de incenso barato, impregnava cada centímetro do cômodo apertado. Ali jazia Dona Lúcia, 68 anos, dona de um sorriso que, segundo os vizinhos, era tão caloroso quanto o sol de verão. A cena era clara: um curto-circuito na velha extensão que alimentava a televisão. Um acidente doméstico, daqueles que se veem em noticiários e causam um aperto no peito, mas raramente abalam a rotina de uma cidade como Itaquarim.
Contudo, para os investigadores, algo não se encaixava. A princípio, a linha de investigação era linear: negligência com a fiação antiga. Mas então, o detalhe que virou um nó no estômago de todos surgiu. O corpo de Dona Lúcia estava em uma posição inusitada, quase como se tivesse tentado fugir de algo. E as chamas, apesar de concentradas na região da TV, haviam deixado um padrão de queima que não condizia com um simples curto-circuito. Parecia… direcionado.
O Delegado Matias Bastos, um homem de poucas palavras e olhar cansado, esfregava a testa enrugada. “É como se alguém quisesse que parecêssemos acreditar que foi um acidente”, confidenciou a um colega, em voz baixa, enquanto inspecionava a cena. A “ilusão” que ele sentia não era fruto de uma teoria conspiratória, mas de fatos que se recusavam a ser explicados por uma causa óbvia.
Os dias seguintes foram um turbilhão de entrevistas e refações. A Rua das Acácias, conhecida pelo burburinho das crianças brincando e pelas conversas nas calçadas ao entardecer, agora estava impregnada de um silêncio inquietante. As vizinhas de Dona Lúcia, acostumadas a compartilhar cafezinhos e segredos, agora trocavam olhares apreensivos.
“Ela era um anjo”, repetia Dona Eunice, a vizinha da casa ao lado, os olhos marejados de lágrimas. “Nunca faria mal a ninguém. Vivia para a neta, a pequena Sofia.” Sofia, uma menina de 7 anos, era a única família próxima de Dona Lúcia. Vivia com os pais, um casal de trabalhadores que, segundo relatos, passava mais tempo fora de casa em busca de sustento.
A investigação se concentrou em quem teria algo a ganhar com a morte de Dona Lúcia. Dinheiro? O seguro de vida era modesto. Vingança? A vida pacata da aposentada não oferecia muitos inimigos. A câmera de segurança da esquina, milagrosamente funcionando, mostrou apenas o movimento usual da rua. Nenhuma figura estranha, nenhum veículo suspeito nas horas cruciais. Era como se o criminoso tivesse operado em um vácuo.
Foi então que surgiu um nome. O nome de um homem que Dona Lúcia havia denunciado há alguns meses por importunação e vandalismo em seu pequeno jardim. Um homem conhecido na região pela instabilidade e pela tendência a ser violentamente descontrolado. Um homem que, coincidentemente, tinha álibis frágeis para a noite do incêndio. A hipótese ganhava força, pintando um quadro de um agressor impaciente que, em um surto de raiva, teria armado a cena para parecer um acidente.
“Ele sempre foi problemático”, disse o Seu Geraldo, dono da padaria local, enquanto amassava pães com a destreza de quem o faz há décadas. “Mas com a Dona Lúcia? Ela era tão dócil… não consigo imaginar ele fazendo algo assim de propósito. A não ser que… a não ser que ele quisesse que a gente pensasse que foi o destino.”
A teoria do agressor, alimentada pelo desespero dos investigadores em encontrar um culpado tangível, começou a se moldar. A narrativa era conveniente: um desequilibrado que, em um momento de fúria, causou a tragédia e tentou mascará-la. No entanto, o padrão exato das chamas, a posição do corpo, a ausência de sinais de arrombamento na porta – tudo ainda ecoava como um sussurro de dúvida na mente do Delegado Matias.
E se o fantasma na Rua das Acácias não fosse uma pessoa, mas uma circunstância cuidadosamente construída? E se o verdadeiro culpado, longe de ser um agressor óbvio, fosse alguém que sabia exatamente como a vida de Dona Lúcia funcionava, suas rotinas, seus medos, e usou isso para armar uma armadilha perfeita? Alguém que sabia que um acidente doméstico seria a única explicação crível para o desespero de uma senhora sozinha em seu lar.
A Rua das Acácias ainda guarda seus segredos. A fumaça se dissipou, mas o cheiro de incerteza permanece no ar. A investigação segue, esbarrando nas paredes de uma verdade que insiste em se apresentar de forma inatingível, como um reflexo distorcido em um espelho quebrado. E os vizinhos, que antes compartilhavam a dor da perda, agora compartilham um temor ainda maior: o de que o verdadeiro assassino de Dona Lúcia ainda esteja entre eles, invisível, vestindo a máscara da inocência.
Mas quem seria capaz de orquestrar uma tragédia tão fria, a ponto de transformar uma vida inocente em uma fábula de negligência e azar?
Por: Silas Thorne, o Cronista do Insólito

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