A Poeira Dourada de Seu Geraldo
O cheiro de café coado, forte e um pouco queimado, pairava no ar rarefeito da Rua das Flores. Não era um aroma convidativo, mas sim o perfume amargo da resignação que se agarrava às cortinas desbotadas do bar de Seu Geraldo. O bar era seu laboratório, um microcosmo do Brasil que ele tentava decifrar, não com retortas e alambiques, mas com a observação aguda dos rostos que o buscavam.
Seu Geraldo não era um alquimista no sentido clássico, mas transformava. Transformava descontentamento em conselhos mordazes, mágoa em piadas sem graça, e esperanças esfaceladas em uma caneca de pinga barata. Havia nele uma sabedoria torta, forjada nas perdas que a vida generosamente lhe impôs. A maior delas, ele guardava como uma pepita rara e dolorida: a morte da filha, Débora, atropelada por um carro de luxo que nunca foi encontrado, o motorista, um vulto que desapareceu na madrugada como fumaça.
Não havia um nome no registro de crimes, nenhum indício. A polícia, em sua eficiência morna, arquivou o caso. Para Seu Geraldo, contudo, o caso estava em eterno andamento, correndo nas veias de seu sangue, pulsando nas noites de insônia. Ele se tornou um observador atento dos carros que passavam, dos donos de suntuosos veículos que estacionavam na praça, dos sorrisos que lhe pareciam falsos demais.
Certo dia, um homem de terno impecável, um perfume caro que o espanto no ar, entrou no bar. Era o Dr. Elias, um advogado poderoso que morava em uma casa que parecia flutuar no alto da colina, um lugar de onde se via o mundo, mas que, para Seu Geraldo, parecia uma fortaleza inacessível. O Dr. Elias pediu um uísque. Seus olhos, azuis como um céu de verão, fixaram-se nos de Seu Geraldo com uma intensidade que o velho sentiu na carne.
“Seu Geraldo,” a voz do advogado era suave como seda, mas carregada de um peso oculto. “Dizem que o senhor tem ouvidos para tudo que acontece nessa cidade.”
Seu Geraldo limpou um copo com um pano puído. “Ouço o que me chega, doutor. E o que não me chega, eu imagino.”
O Dr. Elias deu um gole em seu uísque. Um leve tremor nas mãos, que não passou despercebido. “Uma questão delicada, sabe. Um assunto… particular. Que se assemelha a um… roubo. De algo valioso. Mas sem valor aparente para outros.”
Seu Geraldo deixou o copo no balcão. A poeira dourada que o sol da tarde desenhava no ar do bar parecia, por um instante, emanar do próprio Dr. Elias. Um medo antigo, a lembrança do impacto, da sirene que nunca veio, o assaltou.
“Roubo,” repetiu Seu Geraldo, a voz rouca. “Sei como é quando levam algo seu sem pedir licença. E sem dar satisfação.”
O Dr. Elias desviou o olhar para a rua, onde um carro importado, de um vermelho vibrante, passou lentamente. “Há provas, sabe. Pequenas coisas. Uma marca na pintura. Um fragmento. Coisas que um homem astuto poderia… encobrir. Mas que a natureza, em sua imensidão, jamais esquece.”
Seu Geraldo sentiu um arrepio. A alquimia que praticava não era de metais, mas de segredos. Ele transformava fragmentos de informação, sussurros na calçada, olhares furtivos, em uma verdade que, para ele, era a única matéria prima que importava. Ele passou a frequentar os arredores da casa do Dr. Elias, não com a pressa da vingança, mas com a paciência meticulosa do alquimista. Notou o carro vermelho, sempre estacionado na garagem reluzente. Reparou em uma pequena ranhura na porta do passageiro, algo que ele próprio havia notado em fotografias que a polícia lhe mostrou anos atrás, fotos de destroços que ele não reconheceu na época.
Uma noite, um jovem mensageiro, com o uniforme rasgado e o olhar cansado, derrubou uma pequena pasta enquanto entregava um documento no endereço do Dr. Elias. O vento levou alguns papéis para a sarjeta. Seu Geraldo, que estava do outro lado da rua, fingindo consertar um pneu furado, recolheu um pedaço de papel. Era um recibo de lavanderia, com um endereço diferente.
Naquele endereço, um pequeno borracheiro, longe do brilho da colina, Seu Geraldo encontrou um homem que, a julgar pelo jeito que evitava o olhar, parecia carregar mais peso que um pneu murcho. Um pedaço de pano, deixado para secar, tinha uma mancha peculiar, um tom de tinta que o lembrava do vermelho vibrante do carro. E, escondido em uma caixa de ferramentas, ele encontrou um pequeno frasco. Um frasco com um pó finíssimo, de cor levemente dourada.
Seu Geraldo levou o pó para casa. Em seu pequeno quintal, sob a luz fraca de um poste, ele o misturou com água. O líquido assumiu um brilho opaco, quase imperceptível. Ele sabia, com a certeza fria que o consumia, que havia descoberto o catalisador. A prova.
No dia seguinte, o Dr. Elias apareceu novamente no bar. Seu Geraldo estava atrás do balcão, a mesma expressão impassível de sempre.
“Doutor,” disse Seu Geraldo, a voz baixa. “Tenho algo que pode lhe interessar. Uma… substância. Que reage com a memória. E com a culpa.”
Ele colocou um pequeno envelope sobre o balcão. Dentro, um pouco do pó dourado.
O Dr. Elias pegou o envelope. Seus dedos tremeram visivelmente. O azul de seus olhos se tornou escuro, turvo.
“E qual o preço dessa… substância, Seu Geraldo?” perguntou, a voz embargada.
Seu Geraldo sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos. “O preço, doutor, é a verdade. Que, às vezes, se esconde em um pó. E que pode transformar tudo. Ou nada.”
Ele serviu um copo de pinga para si mesmo. A poeira dourada pairava no ar, não mais do sol, mas de uma vingança silenciosa, em processo de destilação. Ele não sabia se o Dr. Elias se entregaria, se fugiria, ou se o pó dourado teria o efeito esperado. Ele apenas havia oferecido a ele a chance de encarar o que havia escondido. A busca por justiça, ele descobriu, era um alquimia complexa, onde nem sempre o metal precioso era ouro, mas sim o peso da consciência. E o futuro, como o pó que ele agora guardava, era incerto e cintilante.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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