A Última Canção de Dona Odete
O cheiro de café coado e bolacha de polvilho pairava no ar abafado do apartamento na Vila Mariana. Dona Odete, com suas mãos enrugadas e unhas sempre impecáveis, servia seu neto, André, em silêncio. O som sutil da TV, um programa de culinária com uma apresentadora de voz melosa, era o único ruído além da respiração ritmada da senhora.
André, 28 anos, com a testa franzida e os ombros curvados, olhava para a xícara fumegante sem realmente ver. A notícia sobre o estado de saúde de Dona Odete pairava entre eles como uma névoa fria. Os médicos haviam dito, com a gentileza impessoal que a medicina moderna tão bem domina, que era uma questão de tempo. Um tempo que, segundo eles, se esgotava como areia fina entre os dedos.
“Você está magro, meu filho”, Dona Odete finalmente quebrou o silêncio, a voz embargada por uma fragilidade que André tentava ignorar. Ela se levantou com um suspiro, apoiando-se em sua bengala de madeira escura, decorada com um discreto entalhe de um beija-flor.
“Eu ando comendo, vó”, ele respondeu, a mentira soando oca até para si mesmo. Ele queria gritar, reclamar, implorar que algo, qualquer coisa, pudesse mudar o curso inexorável dos acontecimentos. Mas as palavras se prendiam na garganta, pesadas como os dias que se arrastavam.
Dona Odete se dirigiu ao velho piano de cauda que ocupava um canto da sala, empoeirado e raramente tocado. As teclas amarelecidas pareciam um sorriso cansado. Ela se sentou, sentindo a madeira fria sob seus dedos.
“Lembra quando você era pequeno e pedia para eu tocar a ‘canção das estrelas’?”, ela perguntou, sem se virar. Era uma melodia simples, que ela improvisava para acalmar os pesadelos dele. Uma sequência de acordes suaves, com um toque de melancolia e esperança.
André assentiu, uma onda de nostalgia o atingindo. Ele se lembrava. As noites em que o medo o apertava, e a música dela o envolvia como um abraço. Era a melodia que ele associava à segurança, ao amor incondicional.
Dona Odete pousou os dedos sobre as teclas. O primeiro acorde soou hesitante, como um pássaro desajeitado tentando alçar voo. Depois, veio outra nota, e mais outra. Não era a “canção das estrelas”. Era algo diferente. Uma melodia lenta, profunda, que carregava consigo o peso dos anos, das alegrias, das perdas. Havia uma ternura dolorosa em cada nota, uma saudade que transcendia o tempo e o espaço. Era a melodia da vida que se despedia.
André ouvia, imóvel, sentindo as lágrimas quentes escorrerem pelo rosto. Ele não via mais a sala, nem a TV. Via os verões em Paraty, o cheiro do mar misturado ao doce de goiaba que ela fazia. Via os natais na casa dos tios no interior, o burburinho das conversas, as luzes piscando na árvore. Via o olhar dela quando ele se formou, o orgulho transbordando em seus olhos.
A melodia se intensificava, alcançando um clímax suave, onde a dor e a aceitação se entrelaçavam. Não havia desespero, nem revolta. Apenas uma profunda resignação, tingida de uma beleza serena. E então, tão suavemente quanto começou, a música foi desvanecendo, as notas se tornando cada vez mais espaçadas, até que o silêncio tomou conta da sala.
Dona Odete permaneceu sentada ao piano, os dedos ainda pairando sobre as teclas. Seu corpo, antes tenso, relaxou completamente. O rosto, marcado pelas rugas, agora parecia estranhamente sereno, quase jovem.
André se aproximou lentamente. Chamou o nome dela. Não houve resposta. A melodia, aquela última canção que ela compôs sem sequer perceber, ecoava em sua alma. Uma canção que não precisava de palavras para contar a história de uma vida, de um amor, de uma partida inevitável.
Ele olhou para o beija-flor entalhado na bengala, agora pousada ao lado do piano. Um símbolo de delicadeza, de força e da efemeridade da vida. A melodia da morte não era um grito, nem um lamento. Era um suspiro final, uma despedida em notas que apenas os corações que amaram podiam verdadeiramente entender. E agora, André sabia, a melodia continuaria a ressoar dentro dele, um eco silencioso de tudo o que foi, e do vazio que se abria.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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