O caçador de ilusões.
O caçador de ilusões.
As mãos de Seu Osvaldo, calejadas e finas como galhos secos, tamborilavam um ritmo lento sobre a mesa de madeira lascada. O cheiro de café coado, misturado ao mofo úmido do porão, pairava no ar, um perfume familiar que ele associara à vida, à espera. A luz fraca da única lâmpada pendurada, empoeirada, desenhava sombras dançantes nas paredes de barro. Ele não era um caçador de feras, nem de aves exóticas. Era um caçador de ilusões.
A cidade, lá fora, respirava seu ritmo habitual. O ronco dos ônibus na avenida principal, o grito distante de uma criança, o burburinho de vozes que chegavam abafadas. Mas aqui, no refúgio de Seu Osvaldo, o tempo parecia ter uma consistência diferente, mais densa, mais propícia à captura.
Sua presa raramente era tangível. Eram os sorrisos largos que escondiam rugas de preocupação, as promessas murmuradas ao vento de um futuro que nunca chegava, os sonhos guardados em gavetas empoeiradas que se recusavam a desabrochar. Ele os enxergava com uma clareza perturbadora, como se estivesse equipado com uma lente especial para desmascarar a fragilidade humana.
Hoje, a ilusão era de Dona Elvira. Ela vinha semanalmente, sempre com um pano de prato impecável sobre o ombro e um olhar ansioso por trás dos óculos grossos. Trazia consigo a esperança teimosa de que seu filho, Mauricinho, voltasse para casa. Mauricinho, que partira para a capital há cinco anos com a promessa de riqueza fácil e nunca mais mandara notícia. Dona Elvira jurava que ele ligaria, que mandaria um cartão, que apareceria na porta.
“Ele virá, Seu Osvaldo”, dizia ela, a voz trêmula de fé. “Um dia ele virá.”
Seu Osvaldo assentia, o café na xícara escura já quase frio. Ele via a esperança de Dona Elvira, sim, mas também via a dor silenciosa, a resignação que se disfarçava de força. Ele via a ausência de Mauricinho pintada nas linhas finas ao redor dos olhos dela, na maneira como ela apertava o pano de prato quando a conversa se tornava mais difícil.
“Talvez ele esteja bem, Dona Elvira”, dizia, com a cautela de quem pisa em terreno minado. “Talvez ele tenha achado seu caminho.”
Mas ela balançava a cabeça, um movimento quase imperceptível. “Meu Mauricinho é um bom menino. Ele só se perdeu.”
O dilema de Seu Osvaldo não era sobre desiludir as pessoas. Ele sabia que, em muitos casos, a ilusão era um colchão macio onde a alma se permitia repousar. O problema era quando essa ilusão se tornava um peso, um grilhão que impedia o movimento, a aceitação, o florescimento. Ele não tinha o poder de arrancar essas ilusões pela raiz, mas sentia a obrigação de apontar as rachaduras, de sussurrar verdades inconvenientemente claras.
Lembrou-se de outra cliente, um jovem contador que acreditava piamente que seria o próximo craque do futebol local, apesar de suas pernas curtas e sua falta de coordenação. Ele passava horas no campo de várzea, suando, gritando, convencido de que o gol da vitória estava a um toque de bola de distância. Seu Osvaldo, que o observara por anos, apenas suspirava ao vê-lo voltar para casa, os sonhos ainda intactos, mas os músculos doloridos.
Um dia, o jovem se machucou seriamente. A promessa de uma carreira promissora se estilhaçou junto com seus ligamentos. A desilusão foi brutal, um vendaval que o deixou atordoado. Seu Osvaldo o encontrou em um bar, a garrafa vazia ao lado, os olhos perdidos no vazio.
“Eu não disse que não era para ser?”, perguntou Seu Osvaldo, a voz baixa, sem acusação.
O jovem apenas olhou para ele, um misto de raiva e um pingo de reconhecimento. “Eu precisava acreditar, Seu Osvaldo. Precisava dessa esperança.”
E ali estava o cerne da questão. A ilusão, por mais tênue que fosse, servia como um escudo, um carburador para a existência. Arrancá-la seria o mesmo que desnudar a alma, expô-la ao frio da realidade sem qualquer proteção.
O relógio na parede do porão, de fundo azul desbotado, marcou as três horas. Era hora de Dona Elvira ir. Ela se levantou, ajustou o pano de prato e deu um último sorriso a Seu Osvaldo.
“Até a semana que vem”, disse. “Ele virá.”
Seu Osvaldo apenas acenou, o olhar fixo na porta que se fechava. A ilusão de Dona Elvira, forte como uma rocha, permanecia ali, intacta. Ele a havia “caçado”, havia olhado para ela de todos os ângulos possíveis, mas não a havia capturado. Talvez, pensou, algumas ilusões fossem mais fortes que o caçador. Talvez fossem elas que, de alguma forma torta e dolorosa, mantivessem certas pessoas em pé. E ele, o caçador, ficava apenas com o eco dos passos que não chegaram, o cheiro do café frio e a pergunta sem resposta pairando no ar úmido do porão: de que vale a verdade, se ela destrói o que nos sustenta?
Por: João Pedro Silveira

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