A tecelã de medos.

A tecelã de medos.

O TÍTULO: A Tecelã de Medos

As paredes do pequeno sobrado no Morro do Cruzeiro parecem suar umidade e história. O cheiro de café requentado se mistura ao de mofo, mas ali, no centro de tudo, Dona Lurdes, 72 anos, com seus dedos ágeis e olhos perspicazes, tece. Não são fios de algodão ou lã que ela manuseia, mas algo muito mais sutil e, por vezes, cruel: o medo.

Dona Lurdes é a “tecelã de medos” do bairro, como muitos a chamam em sussurros. Não há um ar formal em sua casa, nem um consultório. Sua “oficina” é a sala de estar, onde um rádio antigo, sintonizado em uma estação de notícias duvidosas, emite um ruído constante de desgraças. O sofá surrado, as estantes abarrotadas de revistas antigas e um santuário improvisado com imagens de santos e objetos que transmitem um ar de superstição compõem o cenário de suas “consultas”.

“Ah, meu filho, o mundo tá virado”, ela confidencia, a voz rouca embargada de preocupação genuína, enquanto ajeita uma cortina desbotada. “A gente ouve tanta coisa… gente que some, assalto todo dia, doença que aparece do nada. Se não se cuidar, a tristeza pega.” Dona Lurdes não mente. Ela apenas amplifica o que a sociedade, em sua fragilidade, já sussurra.

Seu método é peculiar e eficaz. Começa com uma conversa aparentemente casual, sobre o tempo, a vizinhança. Em seguida, insere, com uma naturalidade assustadora, narrativas de desgraças que ouviu em conversas, na rua, ou, principalmente, no seu fiel rádio. Ela descreve com detalhes vívidos como fulano perdeu o emprego por “olho gordo”, como sicrana adoeceu por causa de uma “inveja pesada”, como o assaltante levou tudo porque “o diabo entrou na cabeça dele”.

“É que o mal, sabe? Ele se alimenta da gente sem a gente perceber”, ela explica, o olhar fixo em um ponto imaginário na parede. “A gente fica pensando na vida, nos problemas, e de repente… puf! Vem um peso no peito, um arrepio na espinha. É o medo que se instalando, se agarrando.”

O impacto de Dona Lurdes se estende por todo o Morro do Cruzeiro. João, 45 anos, pedreiro, conta, em meio a um suspiro profundo: “Fui lá depois que perdi meu trabalho. Fiquei com medo de pegar uma doença e morrer. Ela falou que era o ‘ar de desgraça’ que eu tava respirando. Me deu um chá e mandou rezar. Sinto que melhorou um pouco, mas o dinheiro sumiu. E o medo de não achar outro emprego… esse não foi embora.”

Maria Helena, 28 anos, mãe solteira, relata com a voz trêmula: “Meu filho começou a ter pesadelos. Fui na Dona Lurdes, desesperada. Ela disse que era uma ‘energia ruim’ que tava nele, por causa de briga de vizinho. Me vendeu um amuleto. O amuleto tá aqui, mas as noites ainda são longas. E agora tenho medo de quem anda por aí, de qualquer barulho estranho.”

Dona Lurdes não cobra. Seus “pagamentos” são oferendas: um saco de arroz, um quilo de carne, um pouco de dinheiro que as pessoas sentem no coração. Ela alega que está apenas “ajudando a espantar os maus espíritos”, “dando um jeito de aliviar o peso”. E para muitos, ela realmente alivia. A crença em sua sabedoria popular, combinada com a instabilidade e a precariedade da vida nas periferias, cria um terreno fértil para sua influência.

Mas essa influência tem um preço. A exposição constante a narrativas de desgraça, mesmo que filtradas por uma figura de autoridade, pode gerar ansiedade, paranoia e um sentimento de impotência. O “alívio” que Dona Lurdes oferece é, muitas vezes, temporário, mascarando os problemas reais que exigem soluções estruturais, não simpatias e amuletos.

Enquanto o sol se põe e as luzes tímidas do Morro do Cruzeiro começam a acender, Dona Lurdes ajeita mais uma vez suas linhas invisíveis. Seus dedos continuam a tecer, transformando os medos latentes em um manto espesso que cobre a comunidade. Ela não é a vilã, mas uma consequência, um sintoma de uma sociedade que, ao falhar em prover segurança e esperança, deixa um vácuo que pode ser preenchido pela mais antiga e poderosa das emoções.

O rádio continua a murmurar notícias sombrias, e Dona Lurdes, a tecelã, sorri discretamente. O que ela tece com tanto afinco é a certeza de que, enquanto houver medo, haverá quem precise de sua “ajuda”. Mas, em um bairro onde a fragilidade se impõe, quem realmente tece o medo? É a velha senhora em sua sala humilde, ou as circunstâncias que a cercam, e que a todos nós?


Por: Felipe Bastos Guimarães

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