O eco da última vítima.
O eco da última vítima.
O cheiro de café requentado, um eterno acompanhante da madrugada, se misturava ao mofo úmido que emanava do porão. Dona Clara, com seus cabelos revoltos como um ninho de corujas e olhos que carregavam a poeira de décadas, esfregava o pano áspero no balcão da venda. A luz fraca da única lâmpada pendurada, balançando suavemente como um pêndulo, pintava sombras longas e dançantes pelas prateleiras abarrotadas de enlatados sem data de validade clara e sacos de arroz que pareciam ter visto o nascimento de Jesus.
No silêncio quase absoluto, apenas quebrado pelo zumbido persistente de uma mosca teimosa e o ocasional estalo da madeira antiga, um som peculiar se fez ouvir. Não era o latido distante de um cachorro, nem o motor de um carro que viria a ser a distração da manhã. Era um sussurro. Tão baixo que, em outra circunstância, seria engolido pela vastidão do nada. Mas ali, naquele cubículo de lembranças empoeiradas, ele se agarrava, persistente como a raiz de uma samambaia.
“Ele não quis me ouvir.”
Dona Clara parou, o pano enrugado nas mãos. A voz era fina, quase etérea, mas carregada de uma dor tão palpável que fez os pelos dos seus braços se eriçarem. Ela sabia de quem era aquela voz. Ou melhor, de quem *fora*.
Era a voz de Joel. Joel de Seu Zé, o garoto que aparecera umas semanas atrás, com os olhos arregalados e o corpo magro tremendo de febre. Trouxera consigo histórias sussurradas de dívidas, de gente perigosa que cobrava com juros desumanos, e de uma fuga desesperada que o levara até ali, até o fim do mundo que era aquele vilarejo aninhado entre morros e desespero.
Dona Clara, com a sabedoria curtida pelas desgraças da vida e o instinto de quem já viu muito do pior que o mundo podia oferecer, o acolhera. Deram-lhe comida, um canto para dormir, e a ela o jovem confiara seus medos, os nomes que o assombravam, as promessas quebradas. Ela tentara avisá-lo, tentara convencê-lo a não fazer o que ele parecia ter em mente. Mas Joel, em sua juventude imprudente e desespero avassalador, não a ouvira.
“Eu disse que não era o caminho.”
O sussurro se repetiu, agora um pouco mais claro, soando como se viesse de trás da prateleira de biscoitos vencidos. Dona Clara fechou os olhos, sentindo o peso do arrependimento pesar em seus ombros. Ela era a Arquivista do Crepúsculo, a guardiã silenciosa das histórias esquecidas, das vidas que se apagavam na bruma da indiferença. Mas naquele momento, ela se sentia apenas uma velha impotente, cujas palavras não foram suficientes para desviar um destino trágico.
Lembrou-se da última vez que vira Joel. Entrara na venda com um brilho estranho nos olhos, um misto de resignação e uma coragem forçada. Falara sobre um último acerto, um último risco que ele precisava correr. Dona Clara tentou segurá-lo, implorou para que ele ficasse, para que buscasse ajuda. Mas ele apenas sorriu, um sorriso frágil que não alcançou seus olhos, e saiu para a noite fria, desaparecendo na escuridão que engolia o vilarejo.
Dias depois, o corpo fora encontrado. Em circunstâncias que ninguém quis investigar a fundo. A polícia veio, fez perguntas que ninguém soube ou quis responder, e foi embora tão rápido quanto chegou, deixando para trás apenas a fumaça do escapamento de suas viaturas e o eco perturbador da vida que se esvaíra.
Agora, o eco voltava.
“Ele podia ter me ouvido.”
Dona Clara abriu os olhos. A luz da lâmpada parecia tremeluzir mais forte. Ela pegou o pano novamente, mas seus movimentos eram lentos, sem propósito. O cheiro de café requentado e mofo pareciam mais fortes, sufocantes. O sussurro persistia, uma nota triste na sinfonia silenciosa da venda.
Ela sabia que aquele era o seu fardo. Ser a testemunha, a portadora das últimas palavras, o receptáculo das angústias que o mundo se esquecia de enterrar. Joel não era o primeiro, nem seria o último. Cada alma que se perdia nas sombras deixava um rastro, uma vibração no ar, um eco que apenas os mais sensíveis podiam ouvir.
“Por que ele não me ouviu?”
A pergunta ecoava em sua mente, replicada pelo sussurro fantasmagórico. Dona Clara olhou para a porta da venda, para a escuridão lá fora que começava a ser pintada pelos primeiros raios tímidos do amanhecer. O sol nasceria, o vilarejo acordaria, e as pessoas seguiriam suas vidas, enterrando Joel na memória como enterraram tantos outros.
Mas o eco permaneceria. E Dona Clara, a Arquivista do Crepúsculo, continuaria a ouvi-lo, em cada silêncio perturbador, em cada sombra que se alongava, em cada história não contada, para sempre guardando o lamento mudo daqueles que não foram ouvidos. E enquanto o sol nascia, ela se perguntou se, em algum outro lugar, em algum outro tempo, ela mesma não seria apenas um eco, um sussurro de arrependimento na memória de alguém.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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