O Sussurro Esquecido da Mata dos Ossos
O cheiro da poeira molhada pairava no ar do sótão da dona Elza, um perfume denso e familiar que guardava segredos de décadas. Os grãos de luz que filtravam pelas telhas quebradas dançavam sobre pilhas de caixas e lonas, iluminando o silêncio pesado que se instalara ali há mais tempo do que Elza conseguia contar. Ela tinha sessenta anos, e aquele sótão, assim como a mata que margeava sua pequena propriedade em São Félix de Araguaia, parecia reter a juventude de um tempo que escapara por entre os dedos.
O corpo foi encontrado por um grupo de garotos que, desobedecendo às mães, ousaram se aventurar além do córrego que marcava o limite da mata. Era Lucas, o filho do padeiro, um menino de dezesseis anos com sonhos de viajar para longe e uma curiosidade que, naquele dia, se tornara fatal. O nó na garganta de Elza era o mesmo de toda a cidade. Lucas não era o primeiro.
Foi enquanto remexia em uma mala antiga, buscando um álbum de fotos para o velório da mãe de Lucas, que ela o encontrou. Um jornal amarelado, dobrado em quatro, com a manchete em tinta desbotada: “Mistério na Mata: Jovens Desaparecem sem Deixar Rasto”. A data: 12 de agosto de 1978. O título da matéria era “Os Sumiços da Mata do Curió”.
Elza apertou o papel com os dedos trêmulos. A Mata do Curió. Era assim que eles chamavam aquela extensão de cerrado denso e sombrio que abraçava São Félix. A mata onde Lucas agora jazia. Ela se lembrava vagamente, um murmúrio distante na memória infantil, de conversas sussurradas, de rostos preocupados. Mas o tempo, implacável arquivista, apagara os detalhes.
A matéria falava de duas jovens, Maria Luísa e Joana, desaparecidas em circunstâncias idênticas, a poucos dias uma da outra. Os policiais da época, descritos com certa condescendência pela falta de recursos, vasculharam a mata, interrogaram moradores, mas nada. Apenas o eco do silêncio e a especulação. A mata engolira as duas. E agora, segundo o jornal, engolira Lucas.
Sentada em um banquinho bambo, com a poeira a lhe pinicar os olhos, Elza sentiu o peso da história se abater sobre ela. A floresta, tão familiar, tão parte da paisagem cotidiana, começava a revelar suas garras. O cheiro de terra úmida, que antes trazia a lembrança das chuvas, agora exalava um odor de mistério, de algo que se ocultava nas sombras.
Ela sentiu a necessidade de ir até lá. Não ao local exato onde o corpo de Lucas fora encontrado, aquilo seria demais. Mas até a margem da mata, onde o verde se adensava, formando uma muralha impenetrável. O sol do fim de tarde pintava o céu de tons alaranjados e roxos, um espetáculo que, em outros tempos, a encheria de paz. Hoje, apenas acentuava a escuridão que parecia emanar das árvores.
Ela andou pela estrada de terra batida, o barulho dos seus passos abafado pelo som distante de grilos e cigarras. A brisa, que trazia o perfume adocicado das flores do cerrado, também carregava um ar gélido, um ar que parecia vir de dentro da mata. Ela parou na beira, observando as árvores altas, os galhos retorcidos como braços em agonia. O silêncio ali era diferente, mais profundo, carregado de uma expectativa estranha.
Elza fechou os olhos e tentou sentir. Sentir o que as jovens de 1978, e Lucas, poderiam ter sentido. Medo? Curiosidade? Uma força irresistível? Ela se lembrou das palavras de sua avó, uma mulher sábia que falava da mata com respeito e um certo temor, dizendo que ela tinha “vida própria” e que guardava “segredos antigos”.
O jornal em suas mãos, mesmo amarelado e frágil, parecia vibrar com uma energia latente. Era mais do que uma notícia antiga; era um testemunho de um padrão, de um ciclo que se repetia. Quantos outros nomes estariam enterrados naquela história que a cidade se recusava a lembrar? Quantas outras mães haviam chorado, apenas para que a vida seguisse em frente, deixando o mistério da mata se aprofundar?
Ela voltou para casa com o jornal guardado com cuidado. Naquela noite, as estrelas brilhavam intensamente no céu de São Félix, mas Elza não sentia o conforto de sempre. A mata, agora, não era apenas um limite natural; era um abismo, um portal para algo desconhecido. E o sussurro esquecido da Mata do Curió, antes silenciado pelo tempo e pela conveniência, voltara a ecoar, chamando atenção para o que se escondia nas profundezas, esperando, talvez, por mais um capítulo.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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