O Silêncio de Botas Novas

O Silêncio de Botas Novas

O cheiro era o primeiro a chegar, antes mesmo do grito. Um mofo persistente, um ralo entupido de um lugar abandonado há tempo demais. O subtenente Lucas Almeida, com suas botas polidas e a farda ainda um pouco rígida, parou na soleira da porta, o estômago dando um nó súbito. O sol da manhã, que até um minuto atrás parecia promessa de um dia produtivo, agora se filtrava pelas vidraças empoeiradas com uma luz doentia, revelando partículas dançando no ar carregado.

A casa, uma dessas geminadas espremidas em algum bairro esquecido de Porto Alegre, tinha a pintura descascada como uma pele doente. O vizinho, um senhor de boné surrado e um silêncio que gritava mais alto que o seu medo, apontou com o queixo. “Foi ele que me chamou. Disse que não via a Dona Clara há dois dias. O portão estava entreaberto.”

Lucas engoliu em seco, o gosto metálico subindo pela garganta. Havia semanas que a academia de polícia parecia um sonho distante, cheio de teoria e simulações. Agora, o cheiro era real. O peso do distintivo no peito era real. E a solidão daquela entrada, com o rádio da viatura inoperante no canto da sala e o olhar apreensivo do vizinho fixo nele, era avassaladoramente real.

“Dona Clara?”, perguntou Lucas, a voz um pouco mais grave do que ele esperava. Era um eco oco no silêncio. Não havia resposta.

A sala estava em desordem, mas não parecia ter sido invadida. Objetos fora do lugar, uma poltrona virada, jornais espalhados. O rastro de uma vida recente, abruptamente interrompida. O coração de Lucas batia contra as costelas como um pássaro em uma gaiola. Ele olhou para a cozinha, a porta entreaberta, e o cheiro se intensificou.

Lentamente, passo a passo, como se pisasse em ovos invisíveis, ele se aproximou. O som de seus próprios passos, abafados pelo tapete empoeirado, era ensurdecedor. E então, ele a viu.

No chão da cozinha, deitada de forma antinatural ao lado de um fogão a gás antigo, estava Dona Clara. O cabelo grisalho espalhado como um halo em volta do rosto pálido e sereno. A boca ligeiramente aberta, como se tivesse tentado gritar, mas o som tivesse morrido antes de sair. Uma mancha escura e úmida se espalhava sob ela, um contraste chocante com o linóleo desbotado.

Um arrepio gelado percorreu a espinha de Lucas. Não era o medo do gore, o que ele imaginava ver nas cenas de crimes. Era algo mais profundo, um temor existencial. O fim daquela vida, ali, tão ordinário e tão brutal. A fragilidade do existir, exposta sob a luz fria da manhã.

Ele ficou parado por um instante que se estendeu pela eternidade. O rádio chiou de repente, tirando-o do torpor. Era o seu parceiro, o sargento Rocha, um veterano de dez anos de farda gasta e um olhar calejado.

“Lucas? Qual a situação aí? O vizinho ligou de novo. Parece que tem algo.” A voz de Rocha soava calma, quase desinteressada.

Lucas abriu a boca para responder, mas as palavras não vieram. Um nó na garganta, a imagem da senhora deitada no chão, o cheiro, a poeira dançando… tudo parecia um borrão. Ele sentiu uma onda de desconfiança, estranha e avassaladora, subir por ele. Desconfiança de quê? De quem? Daquela casa silenciosa? Daquele vizinho que parecia saber mais do que dizia? Da própria fragilidade humana que ele acabara de testemunhar tão de perto?

Respirou fundo, o ar empestado parecendo queimá-lo. Ele sabia que precisava falar, precisava ser o policial que treinou para ser. Mas naquele momento, apenas o silêncio de botas novas, pisando em um chão onde a vida se encerrou sem alarde, parecia a única verdade. Ele olhou para a porta, para a rua, para a vida que seguia lá fora, indiferente ao drama silencioso que se desenrolava dentro daquela casa. E um pensamento sombrio se instalou: o que mais estaria escondido naquela cidade, sob a superfície pacata do cotidiano?

“Rocha,” conseguiu dizer, a voz rouca, quase inaudível. “Tem um corpo.”


Por: João Pedro Silveira

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