Um grupo de crianças encontra um corpo em uma toca de animal, transformando uma brincadeira em terror.
A Toca Que Não Era Mais Casa
O sol de final de tarde pintava a Vila das Flores em tons alaranjados e roxos, um espetáculo diário que prometia mais um fim de semana preguiçoso. Para Léo, Dani e Sofia, porém, a preguiça era inimiga. O quartel-general deles, uma velha mangueira com galhos baixos e fortes, fervilhava com planos. Hoje, a missão era desbravar a “Toca do Diabo”, um buraco escuro e misterioso na encosta da mata que margeava o bairro. Diziam os mais velhos que era lar de um bicho que ninguém nunca viu, um capeta de quatro patas que roubava galinhas.
Léo, o mais velho e autoproclamado líder, empunhava um graveto grosso como se fosse uma espada. Dani, a destemida, com seus joelhos ralados de sempre, carregava uma lanterna a pilhas que piscava intermitentemente. Sofia, a caçula e mais observadora, trazia uma cestinha com bolachas e um suco, um suprimento de emergência para qualquer aventureiro.
“Cuidado, vocês dois”, advertiu Léo, a voz tingida de uma falsa coragem. “Se o Diabo aparecer, Dani atira a luz nele e eu o espanto com a minha espada.”
Dani riu, um som estridente de pura alegria infantil. “E a Sofia pode oferecer umas bolachas pra ele, né? Quem sabe ele não vira nosso amigo?”
Sofia apenas sorriu, os olhos curiosos fixos na entrada escura da toca. O cheiro de terra úmida e folhas em decomposição pairava no ar, misturado ao aroma doce das mangueiras e ao cheiro característico do churrasco que escapava de alguma casa vizinha. Era um perfume de infância brasileira, de liberdade sem supervisão, de verões que pareciam eternos.
A entrada da toca era estreita, um rasgo na terra compactada pela chuva. Tiveram que se arrastar, as roupas sujas de barro, o coração batendo mais rápido com a expectativa. A lanterna de Dani lançava feixes trêmulos, revelando raízes nodosas, teias de aranha que pareciam filamentos de prata e a escuridão densa que engolia a luz.
No fundo, onde a toca se alargava um pouco, encontraram algo que não era um bicho. Era… diferente. Um monte de pano escuro e surrado, meio amassado, meio espalhado. A princípio, pensaram que era lixo, algum descuido de um adulto.
“Que nojo!”, exclamou Dani, apontando a lanterna diretamente para o objeto.
Léo se aproximou, a bravata sumindo. “Não é lixo, Dani. Parece… roupa.”
Sofia, mais devagar, se arrastou para perto. O cheiro não era mais só de terra. Havia algo mais. Um odor adocicado e estranhamente metálico, que fez seu estômago revirar. Ela esticou a mão e tocou o tecido. Estava frio. Gelado.
E então, a luz da lanterna de Dani incidiu sobre uma mão. Uma mão enrugada, de dedos finos e unhas curtas e sujas. A pele era pálida, sem vida. Um dos dedos tinha um anel dourado, o metal desbotado pela umidade.
O som da risada de Dani cessou abruptamente. O graveto de Léo caiu no chão com um baque surdo. O silêncio que se instalou na toca era mais assustador do que qualquer ruído de fera imaginário. Era um silêncio denso, pesado, preenchido apenas pela respiração ofegante dos três.
O que era para ser uma aventura emocionante, uma caçada a um animal lendário, desmoronou em um instante. A fantasia deu lugar a uma realidade crua e aterradora. As bolachas na cesta de Sofia pareceram insignificantes. O suco, uma oferta inútil.
Os olhos de Léo, antes cheios de faíscas de desafio, agora estavam arregalados de pavor. Dani, que nunca sentia medo, estava pálida, a lanterna tremendo em sua mão como se tivesse vida própria. Sofia, a observadora, sentiu uma náusea profunda, uma certeza gelada de que algo fundamental na percepção do mundo havia mudado.
Aquela não era a toca de um diabo. Era o último esconderijo de alguém.
Ninguém sabia como sair dali. A saída parecia mais distante, o mundo lá fora, sob o sol que agora desaparecia completamente, um lugar inimaginável. O terror não era de um animal, mas da fragilidade da vida, da efemeridade do corpo, da solidão de um fim não presenciado. A toca do diabo, de repente, se tornou apenas uma toca, e o que jazia ali, um mistério sombrio que as crianças jamais conseguiriam desvendar sozinhas. E o cheiro metálico, esse, parecia ter se grudado em suas roupas, em suas peles, em suas memórias.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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