O Perfume da Terra
João, com suas mãos grossas e calejadas, dedicava seus domingos àquele pedaço de chão. Um respiro em meio ao cinza da cidade, seu jardim era seu santuário. Rosas cor de vinho que ele cuidava com o mesmo carinho que dedicava aos seus dois filhos, um muro baixo de pedras que separava seu reino verde da imensidão sombria da mata. Era ali, entre a jabuticabeira carregada e um canteiro de orquídeas tímidas, que a manhã de sábado se despedaçou.
Ele ajoelhou-se para arrancar um matinho teimoso, o cheiro úmido da terra recém-revirada invadindo suas narinas, misturado ao dulçor das flores. Um odor diferente, acre, penetrante, o fez franzir a testa. Não era o cheiro de compostagem, nem o de folhas secas em putrefação. Era algo mais profundo, mais nauseante. A curiosidade, essa força traiçoeira que move os homens, o impeliu. Seguiu o rastro fétido em direção à divisa com a mata, o matagal mais denso ali, quase uma parede impenetrável de samambaias e cipós.
Foi quando a luz do sol, filtrada pelas folhas emaranhadas, atingiu algo. Um pedaço de tecido escuro, apodrecido, agarrado a algo que, a princípio, ele pensou ser um tronco caído. Mas o tronco não tinha a rigidez da madeira. Tinha uma maciez estranha, uma ondulação que o corpo humano reconhece mesmo em seus horrores.
O baque surdo da foice caindo no chão ecoou no silêncio que se instalou de repente. O suor gelado escorreu por sua testa, misturando-se à poeira e ao perfume da terra. Era um corpo. Inegavelmente, um corpo. A decomposição já havia avançado, mas a forma era inconfundível. Um homem. Ou o que restara dele. As moscas zumbiam em torno, um coro macabro celebrando a festa.
João recuou, tropeçando nas próprias raízes imaginárias. O ar se tornou denso, irrespirável. Aquele cheiro, antes intrigante, agora sufocava. Sua mente, acostumada à calma monotonia do crescimento, do florescer, da colheita, girava em espiral. Quem era ele? Como fora parar ali? Um acidente? Um crime?
Seus olhos percorreram a mata. A mata, antes um cenário idílico, agora era um manto escuro de segredos. A linha divisória, antes uma marca de sua posse, agora parecia uma cicatriz, um portal para algo sombrio. Lembrou-se do boato que circulara no bairro há alguns meses, um desaparecimento. Um homem. Um pedreiro que sumira sem deixar rastro.
Sentiu o peso da responsabilidade cair sobre seus ombros como um raio. Ele não era detetive, nem juiz. Era apenas um jardineiro amador, com mãos que sabiam plantar e colher, não desenterrar mistérios. Mas o corpo estava ali, em sua terra, em sua divisa. O perfume da terra, que antes trazia paz, agora estava impregnado de morte.
A sirene distante soou, um fio de esperança esgarçada rompendo o silêncio. Os policiais viriam. Fariam perguntas. Olhariam para ele com desconfiança, talvez. Ele não tinha nada a esconder, mas a presença do corpo trazia consigo uma aura de culpabilidade que o oprimia.
Enquanto esperava, seus olhos voltaram para a mata. Aquele emaranhado verde parecia observá-lo, guardando em suas entranhas a história incompleta de um homem. E João, com o cheiro nauseante ainda pairando no ar, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O jardim, seu refúgio, se tornara o limiar de um pesadelo. E ele sabia que, independentemente do que fosse descoberto, a terra continuaria a sussurrar segredos, e o perfume da terra, a partir daquele dia, nunca mais seria o mesmo.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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