O Sussurro da Terra
O cheiro de terra úmida, misturado ao perfume adocicado de alguma flor silvestre esquecida, pairava no ar como uma promessa não cumprida. O sol da tarde, já sem a força cortante do meio-dia, espreguiçava-se por entre as copas densas da Mata Atlântica, pintando o chão com um mosaico de luz e sombra. Era ali, num recanto que o mapa ainda teimava em ignorar, que a equipe de monitoramento ambiental da ONG “Raízes Vivas” trabalhava incansavelmente.
Sofia, com seus quarenta anos e a pele marcada pelo sol e pelas picadas de inseto, era a líder. Seus olhos, de um castanho intenso, guardavam a sabedoria das expedições e a frustração silenciosa com a ganância que engolia a natureza pedaço a pedaço. Ao seu lado, Tiago, o recém-formado em biologia, de vinte e poucos, com seu entusiasmo quase juvenil, mas já com uma seriedade peculiar quando o assunto era a preservação. E Lúcia, a geógrafa, mais velha que Sofia, com seus cabelos grisalhos presos num coque rigoroso, sua precisão técnica era um contraponto à paixão de Sofia e à exuberância de Tiago.
Estavam mapeando uma área de mata secundária, com o objetivo de identificar possíveis rotas de fuga para a fauna local, ameaçada pela expansão de um novo loteamento de luxo. O trabalho era minucioso, cada metro quadrado documentado, cada espécie catalogada. O som compassado de seus passos sobre as folhas secas, o zumbido insistente dos mosquitos, o canto distante de um pássaro – tudo compunha a sinfonia da mata.
Foi Tiago quem tropeçou. Não foi um tropeço comum. A terra, num ponto específico, cedeu de forma estranha, como se um buraco se abrisse sob seus pés. Ele se segurou num galho grosso, o coração acelerado pela surpresa, não pelo perigo iminente.
“Opa!”, exclamou, rindo um pouco, tentando disfarçar o susto.
Sofia e Lúcia se aproximaram, curiosas. O local onde Tiago tropeçara parecia ter sido remexido recentemente. A terra estava solta, diferente do solo compactado ao redor.
“Que estranho”, murmurou Lúcia, ajeitando os óculos. “Parece que algo foi enterrado aqui.”
Sofia se ajoelhou, as mãos calejadas explorando a terra. O cheiro era diferente agora, um odor metálico e adocicado, sutil, mas perturbador. Algo como sangue velho misturado a terra úmida.
“Tem alguma coisa aqui”, disse, a voz firme, mas com uma pontada de apreensão.
Com as pás que carregavam para o mapeamento, começaram a cavar com cuidado. A terra revelou não uma pedra ou uma raiz teimosa, mas um pedaço de plástico escuro e desgastado. O coração de Sofia acelerou. Era um saco plástico, desses de lixo, daqueles bem grossos e resistentes.
Enquanto cavavam mais, a forma começou a se delinear. Não era um animal morto. O tamanho, a consistência… algo estava ali, envolto naquela embalagem sombria. O silêncio tomou conta do grupo, substituindo os sons da mata. O único ruído era o da terra cedendo sob as pás, agora com uma urgência febril.
E então, viram. Um pé. Pequeno, mas inconfundível. Envolvido por um sapato velho e desgastado. Um calçado de criança.
O ar rareou. Tiago engasgou. Lúcia levou a mão à boca, os olhos arregalados de horror. Sofia permaneceu ajoelhada, a pá ainda nas mãos, o olhar fixo naquele pedaço de humanidade desenterrado. Não havia violência explícita no local, nenhuma marca de luta aparente. Apenas a terra acolhendo um segredo cruel.
“Meu Deus”, sussurrou Sofia, a voz embargada.
A expedição de mapeamento havia se transformado em outra coisa. A descoberta que buscavam era a da vida, da biodiversidade. Encontraram a morte. E uma morte que clamava em silêncio por justiça.
Passaram o resto da tarde naquele local, o sol agora se pondo no horizonte, lançando sombras ainda mais longas e sinistras. Chamaram as autoridades. A polícia, a perícia. Os procedimentos eram lentos, burocráticos, contrastando com a urgência do achado. Sofia sentia um nó na garganta, uma mistura de raiva, tristeza e uma responsabilidade que pesava como chumbo. O mapeamento da mata se tornara, naquele instante, o mapeamento de uma dor profunda, de uma história interrompida.
Enquanto os oficiais trabalhavam, Sofia se afastou um pouco, sentindo a necessidade de respirar. Olhou para a mata que a rodeava, para as árvores imponentes que pareciam guardar tantos segredos. Uma brisa suave balançou as folhas, e por um instante, ela imaginou ouvir um sussurro, um lamento que vinha da própria terra, contando uma história que ninguém mais queria ouvir.
A noite caiu, e com ela, a chuva fina e fria que lavava o solo, mas não as marcas deixadas naquele lugar. A equipe de ecologistas, cada um com seus pensamentos turbulentos, recolheu seus equipamentos, sob a luz fraca das lanternas. O corpo, identificado como sendo de uma menina desaparecida há meses na cidade vizinha, seria levado para a necropsia, para as investigações. Mas a terra, aquela terra brasileira, continuaria ali, guardando não só os segredos da natureza, mas também os das feridas humanas. Sofia sabia que o mapa daquela área jamais seria o mesmo. Ele ganharia, em sua mente, uma nova coordenada, um ponto sombrio que falava de negligência, de desespero e da fragilidade da vida. E enquanto voltavam para a cidade, sob o céu escuro pontilhado de estrelas frias, a pergunta pairava no ar, pesada e sem resposta: quantas outras histórias repousavam adormecidas sob os pés de um Brasil que, por vezes, parecia esquecer de olhar para o chão?
Por: João Pedro Silveira

Deixe um comentário