O Silêncio da Terra Molhada
O cheiro de mata atlântica úmida, misturado ao pungente aroma de terra revolvida pela chuva recente, pairava denso no ar. Era um perfume familiar para dona Eunice, quase um abraço que a acolhia de volta para o breu da trilha que levava às cachoeiras. Mas hoje, o abraço tinha um gosto amargo, um pressentimento gelado que lhe arrepiava a pele exposta sob o regador de folhas de bananeira.
Ela o encontrou ali, aos pés de um jequitibá centenário, o corpo estendido como se tivesse adormecido durante uma caminhada. Homem rico, diziam os sussurros que já começavam a se espalhar pelos casarões do centro e pelas barracas de feira do bairro. A roupa, um tênis de marca importada e uma calça de sarja impecável, destoava do barro que a envolvia, como um convite a um paradoxo. Não havia arranhões, nem hematomas, nada que gritasse agressão. Apenas um silêncio profundo e uma placidez que, em outros corpos, seria reconfortante. Em Miguel, parecia uma recusa.
Dona Eunice, com os dedos calejados de quem cuida de plantas e de quem já viu a vida se esvaecer em seus braços, tocou o pulso gélido. Não havia vida, apenas a terra que o abraçava. Ela conhecia Miguel de vista. Era o dono daquela mansão colossal no alto da serra, um lugar que parecia pertencer a outro país, com seus muros altos e carros importados. Vira-o algumas vezes, sempre apressado, com a testa franzida em preocupação ou em uma arrogância silenciosa. Nunca trocaram mais que um aceno desajeitado.
O delegado Célio, com seus óculos de fundo de garrafa e um ar de cansaço crônico, chegou com a viatura levantando poeira. Trazia consigo a jovem investigadora, a Clara, cujo olhar atento já varria a cena com uma intensidade que dona Eunice reconheceu: a busca por algo que o óbvio não revelava.
“Nenhum sinal de luta, dona Eunice?”, perguntou Célio, a voz rouca, como se tivesse engolido areia.
“Ele parecia… em paz, delegado. Ou cansado demais para lutar”, respondeu ela, as mãos apertando o tecido do seu vestido desbotado.
Clara ajoelhou-se perto do corpo, seus dedos finos, sem marcas de trabalho, tocando a textura da terra. Ela não parecia chocada, mas sim imersa em um raciocínio silencioso. Observou a forma como a cabeça de Miguel repousava no chão, o ângulo dos braços, a expressão serena. Miguel era conhecido por sua saúde impecável, pelos exames de rotina, pelas vitaminas importadas. A morte, ali, naquela trilha que cheirava a vida, parecia um insulto à sua própria existência meticulosamente construída.
Os dias seguintes foram um turbilhão de boatos e investigações que esbarravam em paredes de silêncio. A viúva, Sofia, era uma mulher de beleza fria, acostumada a viver na penumbra dourada da mansão. Chorou, sim, mas com uma compostura que mais parecia uma performance ensaiada. Os sócios de Miguel, homens de ternos caros e sorrisos calculados, disseram que ele estava estressado com um grande negócio, mas nada que justificasse um passeio solitário por aquelas trilhas remotas.
Clara vasculhou a mansão, os escritórios, os extratos bancários. Encontrou uma vida de luxo, de conquistas materiais, mas faltava algo. Uma essência. Miguel era um enigma em si mesmo, um homem que parecia ter conquistado o mundo, mas que, ao que tudo indicava, morria em um pedaço esquecido dele, sozinho.
Uma tarde, Clara retornou à trilha. A chuva tinha lavado parte da terra, mas ainda era possível sentir a umidade e o perfume da floresta. Ela caminhou mais adiante, onde a trilha se tornava mais estreita, quase desaparecendo entre as samambaias. Encontrou um pequeno altar improvisado: um punhado de flores silvestres, algumas pedras dispostas em círculo. Não era obra de dona Eunice. Era um lugar de… introspecção? De fé?
O corpo de Miguel, o homem rico, sem sinais de violência aparente, jazia silencioso. Mas o que Clara sentia, pairando no ar como a névoa matinal, não era um fim. Era uma pergunta. Uma pergunta que a terra molhada guardava em seus poros, esperando alguém que ousasse escutar. Quem era realmente Miguel, além das contas bancárias e dos títulos? E o que ele buscava, ou fugia, naquele silêncio verde e úmido, antes de ser engolido pela terra? A resposta, Clara sabia, não estava nos laudos ou nas testemunhas. Estava na própria terra, que tudo abraça e tudo guarda. E talvez, apenas talvez, Miguel tivesse encontrado ali o que tanto buscou em vida: um fim sem drama, um retorno a algo primitivo, a paz que seu império não lhe podia oferecer. Ou talvez, apenas tivesse sido um acidente banal, a fragilidade da vida em contraste com a opulência. A verdade, como a trilha, se perdia em um emaranhado de possibilidades.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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