O Eco Silencioso
O cheiro de café coado, misturado ao mofo úmido da parede que descolava em leitos de tinta antiga, era o alarme silencioso da manhã de Clara. O sol preguiçoso de agosto invadia a sala, desenhando listras douradas sobre o piso gasto de madeira, iluminando a poeira em suspensão como confetes esquecidos de uma festa passada. Clara, encolhida no sofá de veludo puído, com um xale fino sobre os ombros magros, fechou os olhos com mais força. O que a acordara, porém, não fora o sol nem o aroma familiar. Fora outra coisa. Um som.
Um som baixo, rítmico, insistentemente sutil. Um pulsar.
Ela se remexeu, a manta deslizando, expondo um braço pálido com veias finas como fios de seda. Levantou a cabeça, escutando. A casa estava em silêncio, o zumbido constante do ventilador de teto no quarto ao lado, a respiração calma de seu avô no andar de baixo, a batida familiar do seu próprio coração em seu peito. Mas havia *aquele* som. Mais profundo. Mais… alheio.
Onde estaria?
Levantou-se, os pés descalços tocando o frio do assoalho. Caminhou pela sala, cada passo hesitante, como quem adentra um território desconhecido dentro de si mesma. A sala, repleta de lembranças: a cristaleira com os vasos que a avó guardava com zelo, a poltrona de couro onde o avô lia os jornais de domingo, a estante abarrotada de livros com lombadas desbotadas. Tudo ali parecia suspirar com o peso do tempo.
O som parecia vir de algum lugar… de dentro. Não do peito. Talvez da cabeça? Não, era mais grave. Um tamborilar abafado, vindo de um lugar que ela não sabia nomear.
De repente, a imagem do quarto de hóspedes, que ela mantinha fechado há meses, surgiu em sua mente. Havia algo ali. Algo que ela se recusava a confrontar.
Com as mãos ligeiramente trêmulas, girou a maçaneta fria. Um ar parado, denso, a recebeu. O cheiro de mofo era mais forte ali, com um toque inconfundível de desinfetante barato. A luz fraca que entrava pela fresta da cortina revelava um quarto esquecido. Roupa de cama dobrada, empoeirada. Uma cômoda com as gavetas fechadas. E, no centro, a caminha de solteiro, onde um pequeno rádio antigo repousava.
O som. Era dali que vinha.
Aproximou-se devagar, o coração apertado em uma ansiedade que não sabia explicar. Estava com o volume no mínimo, quase inaudível, mas persistente. Um batimento. Lento, constante.
Hesitou, mas a curiosidade, essa força insidiosa, a impeliu a estender a mão para o botão. Girou-o. O som aumentou ligeiramente. Um eco de vida. Um pulsar que não era o seu, nem o de seu avô.
Então, viu.
Embaixo do rádio, escondida pela sombra, havia uma caixa de sapatos antiga. De couro, desbotada, com uma fita desfiada. Algo a impeliu a pegá-la. Era surpreendentemente pesada. As mãos tremiam agora sem controle. O batimento parecia ressoar dentro da caixa.
Com os dedos, desfez o laço da fita. O ranger da tampa ao abrir foi quase ensurdecedor no silêncio do quarto.
E lá estava.
Um pequeno aparelho, metálico, com fios finos e uma tela minúscula, como um relógio antigo. Acoplado a ele, um pequeno microfone. E a luzinha verde piscava, ritmicamente.
Aquele som… era um *grava-som*. Um gravador. E ele estava ligado.
Mas o quê? Quem?
Seus olhos percorreram o quarto, buscando uma explicação. O quarto de Pedro. Seu irmão. Que partira há cinco anos, de repente, sem avisar, levando consigo pedaços da alegria da casa. Ele sempre foi de fugas, de desaparecimentos súbitos. Mas nunca assim.
O aparelho era dele. Ela reconhecia a escrita peculiar dele no canto da caixa: “O que resta”.
O que restava?
Uma onda de calor subiu por seu corpo. O batimento suave do aparelho continuava, implacável. Como um segredo guardado em um eco. Clara olhou para o gravador, para a luzinha verde que piscava como um coração distante.
A possibilidade, tênue como um fio de teia de aranha, pairou no ar. Havia a possibilidade de Pedro ter deixado aquilo ali. De ter gravado algo. Algo para ela.
O som do batimento cardíaco que não era seu, agora, parecia mais próximo, mais íntimo. Era um convite. Um desafio. Um chamado para uma conversa que nunca aconteceu, em um tempo que se esvaiu.
Olhou novamente para a caixa. Para o gravador. O que estaria gravado ali? Uma despedida? Uma explicação? Uma última canção? Ou apenas o som ambiente de um quarto vazio, ecoando a solidão de quem partiu?
O sol continuava a desenhar listras na sala lá fora. O cheiro de café já se dissipava. O silêncio da casa parecia mais profundo, mais pesado, prenhe de perguntas sem resposta. Clara levou a mão ao gravador, o dedo pairando sobre o pequeno botão. A luz verde piscava, um convite constante. O som do batimento continuava, um ritmo estrangeiro em sua própria existência, sussurrando segredos de um passado inacessível. A decisão de pressionar o botão pairava no ar, uma nuvem pesada de incerteza, de saudade, de um amor que insistia em pulsar.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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