As Horas da Sala de Estar
O peso do dia parecia se acomodar em cada canto da sala de estar. Clara observava a poltrona de veludo desgastado, aquela onde seu pai gostava de ler o jornal matinal, e tinha a nítida impressão de que ela havia deslizado alguns centímetros em direção à janela. Um movimento quase imperceptível, como se o tempo estivesse gentilmente empurrando as coisas para um lugar mais ensolarado. Ela piscou, esfregou os olhos. Não. A poltrona estava no mesmo lugar de sempre.
Mas a sensação persistia. A mesa de centro, com suas imperfeições de madeira que contavam histórias de canecas quentes e cotovelos apoiados, também parecia ter se aproximado do sofá. O sofá, aliás, com o tecido encardido de tantas tardes de cochilos e conversas, exalava um certo cansaço, como se estivesse se espreguiçando para caber melhor na paisagem doméstica.
Era a rotina. O peso da rotina. A tarde se arrastava mansa, o sol de um amarelo pálido se esgueirando pelas persianas, desenhando listras no chão de taco. O ar estava denso, com o cheiro de café requentado e a poeira que dançava nos feixes de luz. Clara, sentada à mesa da cozinha, o caderno aberto à sua frente, tentava organizar os pensamentos para terminar a dissertação. Palavras que teimavam em fugir, ideias que pareciam se distanciando, como os móveis da sala.
Ela suspirou, o som suave ecoando no silêncio da casa. A casa que um dia foi barulhenta, cheia de passos apressados, risadas e a melodia da TV ligada no volume máximo. Agora, o silêncio era o mobiliário principal, imponente e silencioso.
O telefone tocou, estridente, tirando-a do torpor. Era sua irmã, Ana. “E aí, Clara? Já pensou em como vamos fazer com o inventário? A casa precisa ser vendida, né?” A voz de Ana, sempre prática, sempre com os pés no chão, trazia consigo o peso das responsabilidades.
Clara se encolheu um pouco. Vender a casa. Vender tudo. Vender as memórias embutidas em cada rachadura da madeira, em cada arranhão no piso. A poltrona do pai. O sofá onde os filhos brincavam de forte. O aparador onde a mãe colocava as flores que comprava na feira. Vender tudo isso significava, de alguma forma, mover as peças para sempre.
Ela voltou para a sala. O crepúsculo começava a tingir o céu de tons alaranjados. A luz mudava, e com ela, a perspectiva. A poltrona, sob um novo ângulo, parecia mais antiga, mais resignada. A mesa de centro, com suas linhas tortas, ganhava uma melancolia sutil. Os móveis não se moviam, Clara sabia. Eram eles que ficavam. Era ela que precisava se mover. Mas para onde? E como, quando o próprio corpo parecia ter se afeiçoado à inércia, à espera de que as coisas se arranjassem sozinhas?
Ela fechou os olhos, imaginando cada peça em seu devido lugar. Onde estariam os seus próprios móveis, quando o tempo decidisse rearranjar o seu espaço na vida? A sensação de que tudo se movia lentamente a envolvia como um cobertor familiar, mas também sufocante. O sol se pôs. A escuridão engoliu a sala, e Clara, em meio às sombras, sentiu a quietude profunda que antecede uma grande mudança. Ou talvez, apenas mais uma noite em que os móveis, em sua mudez sólida, testemunham a inexorável passagem das horas.
Por: Marina Rocha Antunes

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