O Perfume das Sombras

O Perfume das Sombras

O cheiro era de terra molhada e jasmim murcho. Um odor denso, quase palpável, que se agarrava às narinas de Clara mesmo depois de lavar o rosto pela terceira vez na pia fria do banheiro. Era domingo de manhã, o sol já pintava as cortinas de renda fina com um dourado pálido, mas a quietude da casa, quebrada apenas pelo murmúrio distante do trânsito da Avenida Brasil, parecia amplificar cada ruído interno do seu corpo, cada respiração trêmula.

Ela olhou para o reflexo. A pele pálida, as olheiras que denunciavam noites em claro, os cabelos castanhos desgrenhados em volta do rosto. A mulher que a encarava parecia uma estranha, assustada com algo que ela mesma não conseguia nomear. Havia dias assim, em que o véu entre o real e o incompreensível se tornava perigosamente fino.

Na noite anterior, enquanto regava as samambaias na varanda com vista para os prédios que se erguiam como gigantes adormecidos, algo aconteceu. Ou melhor, ela *sentiu* que algo aconteceu. Não viu, não ouviu. Foi uma percepção visceral, um arrepio que percorreu a espinha como um raio gélido. Uma silhueta esguia, etérea, como se feita de fumaça tingida de pôr do sol, pairou por um instante no portão. Não tinha feições, não tinha forma definida, apenas a sugestão de presença, um vácuo que sugava a luz e o som ao redor.

Seu coração disparou, o regador caiu da mão, espalhando água e terra na calçada gasta. O barulho a trouxe de volta, a silhueta sumiu tão rápido quanto apareceu, engolida pela noite que descia sobre o Rio. Ela se convenceu de que era o cansaço, a pressão do trabalho, a saudade de Arthur, que insistia em visitar os sonhos como um fantasma persistente.

Mas o perfume. O perfume que não pertencia a nada conhecido permanecia. Uma mistura estranha de algo floral, terroso e um toque metálico, como sangue seco. O mesmo perfume que agora, na quietude do amanhecer, parecia emanar de dentro de si mesma.

O cheiro a levava para um lugar que ela não conseguia identificar. Um lugar de memórias distorcidas, de sussurros esquecidos. Era um eco, talvez, de algo que ela não deveria ter presenciado, ou de algo que estava tentando se manifestar.

Desceu para a cozinha, a luz fraca do lustre iluminando as paredes descascadas e as fotos de família emolduradas. Seu pai, um homem forte e sorridente em uma foto antiga na praia de Copacabana. Sua mãe, de olhos doces, segurando-a no colo. E Arthur, seu Arthur, em uma imagem borrada de um carnaval antigo, o sorriso largo e o brilho nos olhos que ela sentia falta em cada célula do seu ser.

Enquanto preparava o café, o cheiro se intensificava. Olhou para o chão, para as rachaduras finas que pareciam veias expostas no cimento. Seria ali que o perfume se originava? Ou seria ela o recipiente, a antena involuntária para algo que pairava na fronteira do entendimento?

O som da campainha a fez pular. Era o Sr. Almeida, o porteiro, um homem grisalho de bigode fino e olhar gentil, como sempre.

“Bom dia, Dona Clara. Trouxe o jornal que estava no parapeito da escada. Acreditei que não tinha visto.”

Ela agradeceu, a voz rouca. O Sr. Almeida hesitou por um instante, o olhar fixo em algo atrás dela, na direção da varanda. Um lampejo de curiosidade, talvez de medo, cruzou seu rosto antes de ser rapidamente contido.

“Tudo bem, Dona Clara? O senhor parece um pouco… pálida.”

“Apenas o sono, Sr. Almeida. Nada demais.”

Ele assentiu, ainda com o olhar perdido. “Sim… o sono. Às vezes, ele nos prega peças, não é mesmo?” Um sorriso forçado. “Tenha um bom dia.”

Quando ele se virou e desceu as escadas, Clara fechou a porta, o coração apertado. As palavras do Sr. Almeida ressoavam em sua mente. “O sono nos prega peças”. Mas era apenas sono?

Ela abriu o jornal com as mãos trêmulas. As manchetes eram as de sempre: política, economia, a violência urbana que pulsava nas veias da cidade. Nada que se conectasse à visão etérea ou ao perfume insistente.

De repente, um detalhe chamou sua atenção. Uma pequena nota social, no canto inferior de uma página, com uma fotografia granulada. Uma mulher, jovem, com um vestido levemente desbotado, um sorriso contido. O nome abaixo: Ana Lúcia Viana, desaparecida há 20 anos. A foto não era clara, mas havia algo nos olhos, uma melancolia familiar que a atingiu como um soco. E, ao lado da foto, uma breve descrição: “Última vez vista em sua residência, na Rua das Orquídeas, após o pôr do sol. Um perfume incomum foi relatado por vizinhos naquela noite: terra molhada e jasmim murcho.”

O jornal escorregou de suas mãos. O cheiro no ar, agora, não era apenas de terra e jasmim. Era também de medo, de saudade, de algo que se perdeu e agora buscava, desesperadamente, um caminho de volta. Clara olhou para a varanda, para o espaço vazio onde a silhueta havia estado. A visão fugaz, que não fazia sentido algum, de repente parecia sussurrar uma história antiga, uma história que estava intrinsecamente ligada a ela, e cujo desfecho, ela sabia, ainda estava por vir. A cidade lá fora, em seu barulho e rotina, parecia indiferente, mas para Clara, algo fundamental havia mudado. As sombras, antes apenas ausência de luz, agora carregavam um perfume, e uma promessa silenciosa de revelação.


Por: Isabela Fernandes Couto

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